quarta-feira, 20 de outubro de 2010

"Paga com dinheiro ou multibanco?"

Mais uma ida banal, necessária e tão desinteressante às compras. O ritual em que entramos num edifício, mais um edifício onde o ser humano é vigiado constantemente, quer pelas câmaras instaladas em cada centímetro cúbico, quer pelos movimentos bancários que faça. Um edifício de betão que domina as nossas carteiras, onde como formigas nos alinhamos à espera de recolher a nossa alimentação para nós e para a nossa família. O ritual tão semelhante ao que era usado nos tempos de escravidão ou nos campos de concentração durante o holocausto: uma fila à espera da dose diária.
Como muita gente, neste dia solarengo, penetrei neste antro de consumismo, era necessário comprar alimentação para este mês. Sempre as mesmas acções, a monotonia de sempre, pôr a moeda, tirar o carro, ver a alegria e o entusiasmo das crianças nas cadeirinhas do carro das compras, ou a conduzir o seu próprio carro pequenino, como se este fosse o melhor sítio do mundo onde estar. Isto tudo em oposição às caras menos amigáveis dos adultos que entre tentar controlar a euforia dos petizes, fazer contas mentais sobre quanto prevêem gastar, rever mais uma vez a lista memorizada à última hora têm ainda espaço para pensar que este era o último sítio onde gostariam de estar no mundo.
É neste momento que o nosso ideal de sofisticação no que toca à procura de comida é deitado abaixo e substituído pelo mais primitivo, entramos na selva! As estantes transformam-se em árvores imponentes de uma floresta tropical, as luzes incandescentes confundem-se com o sol abrasador dos trópicos, o som do CD que tão exaustivamente passa é substituído pelo chilrear de toda a espécie de pássaros, pelo rugir dos predadores, pelos berros de pânico das presas, pelo choro das crias, pelo barulho dos passos preocupados dos progenitores! A corrida ao último naco de carne! O trepar pelo cacho de bananas! Os atropelamentos...as confusões...as indecisões...o engarrafamento...o congestionamento...os odores...os empurrões.
É, embrenhada nesta selva, encostada ao carro que conduzo (é a minha tarefa, todos temos uma), que me abstenho desta irrealidade lunática tão real à qual assisto como espectadora passiva. É, talvez, nestes momentos de alienação completa que tenho algumas das minhas reflexões diárias. Muitas vezes concentro o meu olhar penetrante em algo, entro num transe controlado que pode ser provocado por uma mancha suja no chão. Mas desta vez enquanto observava o cenário em meu redor deparei-me com um papel amarelado todo amarrotado. Como ser humano a tendência natural foi de começar a questionar tudo o que poderia estar relacionado com aquele papel abandonado. Há quanto tempo estaria ali? A quem teria pertencido? Seria um papel sem nada escrito, um talão de compras, um bilhete romântico perdido pelo tempo, uma ameaça? E se estiver efectivamente escrito? A caligrafia será preocupada, despreocupada? Perceptível, imperceptível? Feminina, masculina? Também pode ser um desenho, um retrato, uma paisagem, uma brincadeira de criança! Um poema, um texto eloquente, amarrotado na angústia da imperfeição. As dúvidas, as questões atormentam-me a mente. Tenho duas opções, ou penso é só um papel...se calhar sem nada, deixado cair por acaso e devido a não ser assim tão importante foi deixado conscientemente para trás. Ou apanho-o e satisfaço a minha curiosidade. A fila na pesagem da fruta era longa, a minha mãe ia demorar, eu tinha tempo.
Discretamente, dou algo como seis passos e, dissimuladamente apanho-o. Agora é, finalmente, meu! Retorno ao carro com um ar vitorioso no meu rosto. Aperto o papel com a mesma intensidade que o meu próprio coração aperta. Está na altura de abrir, desvendar o segredo de uma vez por todas. Mas a racionalidade ataca outra vez...E se quando abrir o papel ficar desiludida?
Abro na mesma e vejo que não é nada mais do que uau que irónico...uma lista de compras. Rio-me um bocado sozinha, paro quando vejo alguém olhar para mim. Agora sinto-me impelida a ler a lista, era pequena, mas tinha sido escrita meticulosamente.
Lista:
Leite
Ovos
Pão
Pizza
Gomas
Alface
Maçãs
Arroz
Água
Coca-Cola
Pasta dos Dentes
Martini
Cerveja
Limão
Morangos
Chantilly
Comecei a ler uma pessoa e não uma simples lista. Esta pessoa estava-me a parecer uma oscilação, ora produtos saudáveis, ora produtos não tão saudáveis. Ora comida e bebida infantil, ora comida e bebidas nitidamente para um serão entre amigos ou especial. Por momentos quis ser aquela pessoa, aquela pessoa que faz uma lista por uma ordem tão disfuncional, porque quereria fazer exactamente este percurso? Teria algo de especial andar de um lado para o outro, a voltar atrás? Despreocupação total, sem pressa...
Eu tinha que fazer isto, irrompi a correr com o carro e juntei tudo o que estava na lista! Foi adorável, uma sensação de liberdade, por causa de uma lista amarrotada. Agora já não via a selva, já não sentia a monotonia, esta já não era uma tarefa rotineira! A minha mãe chega olha para o carro, está cansada, ainda com a cara pouco amigável do adulto que vai às compras...nem sequer questiona.
Chegamos à caixa para pagar, olho para os produtos das pessoas à nossa frente e o que vejo? Sim! Leite, ovos, pão, pizza, gomas,alface, maçãs, arroz, água, coca-cola, cerveja, limão, morangos e chantilly! Então, mas falta a pasta dos dentes e o martini. Pego nos que eu tinha comprado, aproximo-me e digo: "Não perguntem como, mas falta-vos pasta dos dentes e martini, aqui têm."