domingo, 7 de novembro de 2010

Didascália

Quão ténue será a linha que separa a realidade da imaginação? Será que conseguiremos distinguir em que mundo, em que dimensão estamos embrenhados? A quantos passos estaremos da loucura? Ou, vendo as coisas de outro prisma, a quantos passos estaremos da sanidade mental?
E se passarmos a vida a fazer-mo-nos passar por outros? Olhar-mo-nos todos os dias ao espelho e vermos todos os dias alguém diferente...conviver todos os dias com personalidades diferentes. Como é que lidamos quando numa noite morremos e minutos depois pedem-nos para fazer uma vénia perante uma audiência que aplaude entusiasticamente...o quê?...os pedaços da minha vida, a minha morte, o meu renascer das cinzas, o meu ressuscitar? O meu declínio...
Este é o momento certo para escrever sobre este tormento, porque tenho consciência, sou um espectador exterior do meu próprio percurso e estou a ver-me atravessar uma fronteira...
Jovem, audaz, perspicaz, capaz, competente, revejo-me a tomar a decisão, a optar por uma vida difícil, não habitual, pouco ortodoxa...não o típico rapaz que tira o curso de engenharia ou outra coisa qualquer, foi um exemplo escolhido ao acaso, admitindo que há acasos. Os primeiros papéis...tudo bem, os anos passam. Já me apaixonei vinte uma vezes, doze das quais fui bem sucedido, já matei quatro vezes, uma a mim próprio, fui homem quarenta vezes, mulher três, criança cinco, idoso dez, pai oito, animal uma vez, rei seis, soldado duas, escravo uma, cantor vinte, morri trinta e uma vezes...esta é uma das minhas vidas, não me perguntem qual, não sei responder, o que vejo é dúbio...
Depois vejo um casamento, um divórcio, um filho, uma casa, um apartamento, uma garrafa vazia...
Ambas as imagens são pitorescas, qual escolhiam? Mais importante, qual escolhi? Mais importante o que é que tanto aplaudem? Parem de se levantar, de sorrir tanto!
Já não consigo distinguir nada e dói-me a cabeça e eu já morri entendem? Então porque é que continuo a acordar e a morrer e a acordar? Porquê esta repetição incessante de um cenário já meu conhecido? Eu...será que eu fiz...fiz algo de errado? Morri mal? Pode-se morrer mal? Eu sou actor? Eu sou homem? Eu sou um homem que é actor...um actor que é homem...é, é, será possível ser ambos? Porque é que aplaudem? Sou um actor a fazer de actor? Um homem a fazer de homem? Um homem pode fazer de homem? É ... isto é aflitivo, sinto uma pedra de toneladas sobre o meu peito e custa...respirar...entendem? Porque é que aplaudem?
(Aplausos)
Que didascália é esta? Será a minha vida uma didascália à espera de ser seguida? Não? Era um monólogo? Era só um monólogo, um papel?
Mas porque é que aplaudem?...

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

"Paga com dinheiro ou multibanco?"

Mais uma ida banal, necessária e tão desinteressante às compras. O ritual em que entramos num edifício, mais um edifício onde o ser humano é vigiado constantemente, quer pelas câmaras instaladas em cada centímetro cúbico, quer pelos movimentos bancários que faça. Um edifício de betão que domina as nossas carteiras, onde como formigas nos alinhamos à espera de recolher a nossa alimentação para nós e para a nossa família. O ritual tão semelhante ao que era usado nos tempos de escravidão ou nos campos de concentração durante o holocausto: uma fila à espera da dose diária.
Como muita gente, neste dia solarengo, penetrei neste antro de consumismo, era necessário comprar alimentação para este mês. Sempre as mesmas acções, a monotonia de sempre, pôr a moeda, tirar o carro, ver a alegria e o entusiasmo das crianças nas cadeirinhas do carro das compras, ou a conduzir o seu próprio carro pequenino, como se este fosse o melhor sítio do mundo onde estar. Isto tudo em oposição às caras menos amigáveis dos adultos que entre tentar controlar a euforia dos petizes, fazer contas mentais sobre quanto prevêem gastar, rever mais uma vez a lista memorizada à última hora têm ainda espaço para pensar que este era o último sítio onde gostariam de estar no mundo.
É neste momento que o nosso ideal de sofisticação no que toca à procura de comida é deitado abaixo e substituído pelo mais primitivo, entramos na selva! As estantes transformam-se em árvores imponentes de uma floresta tropical, as luzes incandescentes confundem-se com o sol abrasador dos trópicos, o som do CD que tão exaustivamente passa é substituído pelo chilrear de toda a espécie de pássaros, pelo rugir dos predadores, pelos berros de pânico das presas, pelo choro das crias, pelo barulho dos passos preocupados dos progenitores! A corrida ao último naco de carne! O trepar pelo cacho de bananas! Os atropelamentos...as confusões...as indecisões...o engarrafamento...o congestionamento...os odores...os empurrões.
É, embrenhada nesta selva, encostada ao carro que conduzo (é a minha tarefa, todos temos uma), que me abstenho desta irrealidade lunática tão real à qual assisto como espectadora passiva. É, talvez, nestes momentos de alienação completa que tenho algumas das minhas reflexões diárias. Muitas vezes concentro o meu olhar penetrante em algo, entro num transe controlado que pode ser provocado por uma mancha suja no chão. Mas desta vez enquanto observava o cenário em meu redor deparei-me com um papel amarelado todo amarrotado. Como ser humano a tendência natural foi de começar a questionar tudo o que poderia estar relacionado com aquele papel abandonado. Há quanto tempo estaria ali? A quem teria pertencido? Seria um papel sem nada escrito, um talão de compras, um bilhete romântico perdido pelo tempo, uma ameaça? E se estiver efectivamente escrito? A caligrafia será preocupada, despreocupada? Perceptível, imperceptível? Feminina, masculina? Também pode ser um desenho, um retrato, uma paisagem, uma brincadeira de criança! Um poema, um texto eloquente, amarrotado na angústia da imperfeição. As dúvidas, as questões atormentam-me a mente. Tenho duas opções, ou penso é só um papel...se calhar sem nada, deixado cair por acaso e devido a não ser assim tão importante foi deixado conscientemente para trás. Ou apanho-o e satisfaço a minha curiosidade. A fila na pesagem da fruta era longa, a minha mãe ia demorar, eu tinha tempo.
Discretamente, dou algo como seis passos e, dissimuladamente apanho-o. Agora é, finalmente, meu! Retorno ao carro com um ar vitorioso no meu rosto. Aperto o papel com a mesma intensidade que o meu próprio coração aperta. Está na altura de abrir, desvendar o segredo de uma vez por todas. Mas a racionalidade ataca outra vez...E se quando abrir o papel ficar desiludida?
Abro na mesma e vejo que não é nada mais do que uau que irónico...uma lista de compras. Rio-me um bocado sozinha, paro quando vejo alguém olhar para mim. Agora sinto-me impelida a ler a lista, era pequena, mas tinha sido escrita meticulosamente.
Lista:
Leite
Ovos
Pão
Pizza
Gomas
Alface
Maçãs
Arroz
Água
Coca-Cola
Pasta dos Dentes
Martini
Cerveja
Limão
Morangos
Chantilly
Comecei a ler uma pessoa e não uma simples lista. Esta pessoa estava-me a parecer uma oscilação, ora produtos saudáveis, ora produtos não tão saudáveis. Ora comida e bebida infantil, ora comida e bebidas nitidamente para um serão entre amigos ou especial. Por momentos quis ser aquela pessoa, aquela pessoa que faz uma lista por uma ordem tão disfuncional, porque quereria fazer exactamente este percurso? Teria algo de especial andar de um lado para o outro, a voltar atrás? Despreocupação total, sem pressa...
Eu tinha que fazer isto, irrompi a correr com o carro e juntei tudo o que estava na lista! Foi adorável, uma sensação de liberdade, por causa de uma lista amarrotada. Agora já não via a selva, já não sentia a monotonia, esta já não era uma tarefa rotineira! A minha mãe chega olha para o carro, está cansada, ainda com a cara pouco amigável do adulto que vai às compras...nem sequer questiona.
Chegamos à caixa para pagar, olho para os produtos das pessoas à nossa frente e o que vejo? Sim! Leite, ovos, pão, pizza, gomas,alface, maçãs, arroz, água, coca-cola, cerveja, limão, morangos e chantilly! Então, mas falta a pasta dos dentes e o martini. Pego nos que eu tinha comprado, aproximo-me e digo: "Não perguntem como, mas falta-vos pasta dos dentes e martini, aqui têm."

domingo, 19 de setembro de 2010

Lau...

Perdi parte de mim, desapareceu num ápice,voltei ao meu estado inicial, em que só tenho um olho, uma orelha, uma narina, um seio, uma perna, um pé, um braço, uma mão. Metade de um cérebro, metade de um torso, metade de uma cabeça, metade de uma boca, metade de um órgão sexual, metade de uma alma.
Fui este monstro desmembrado durante dezasseis anos e há bem pouco tempo tornei-me num todo pela primeira vez. Foi a cambalear que aceitei e integrei esta minha nova condição. Ver o mundo com dois olhos, ouvir música com duas orelhas, sentir os aromas do mundo com duas narinas...ter duas mãos que se uniam, lábios para saborear...
Tinha uma dentição completa para exibir e dois corações a palpitar dentro de mim. Gostava de acordar e saber que era um todo, um só, mas inteiro.
Agora tudo o que me foi dado foi-me também tirado, caminho por esse mundo novamente ao pé coxinho, empurro obstáculos com a pujança do meu único braço, as minhas lágrimas vertem apenas por um olho...agora ao invés de querer acordar prefiro adormecer para sonhar com aquele todo tão perfeito que um dia fui.
No entanto ainda sinto dois batimentos cardíacos dentro de mim, e a minha alma ainda é um todo.
O que é a física quando há química?!

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Conversas de Balcão

Cheguei aquele ponto da vida no qual, ironicamente ou não, me encontro mais perto da morte e ao olhar de soslaio pelo meu ombro direito, tenho em restrospectiva a minha vida.
Como quando nos filmes as personagens ao estarem perto de ir, não sei bem para onde, têm flashes da sua vida, memórias de 30, 50, 80 anos, condensadas, compactadas, enlatadas em não mais de 10 momentos cruciais. Porém interrogo-me se tenho sequer 10 momentos...
Alberto, 70 anos, aposentado, ex barman num hotel, viúvo, pai, avô, vivo para o estado, para o banco, para o seguro, para o lar, invisivel para a sociedade, morto para os filhos, netos, morto por dentro...
Uma infância banal, sem luxos, com uma bola nos pés e joelhos esfolados, pontapeei pelo mundo até aos catorze, comecei a trabalhar, casei, tive dois filhos, criei-os, a minha esposa faleceu, os filhos que vinham todas as semanas passaram a vir de mês a mês, de ano a ano, nunca.
Quando olho para trás vejo uma vida preenchida por vivências que não são as minhas, como a história de como uma vez me aperaltei todo para um jantar romântico combinado por jornal, um daqueles anúncios "Procura-se HOMEM", fato novo, sapatos engraxados, flor na lapela, cabelo penteado, carro polido ia ser a conquista do ano. Pus a chave no carro e ... nada ... literalmente, pois não tinha combustivel. Apressei-me para o metro, as portas a fechar eu entro mesmo à risca, nada está perdido, até que vejo que o casaco ficou preso na porta, rasgou, saio em mangas de camisa, um carro passa por uma poça de água enlameada e suja-me. Chego ao restaurante e procuro uma rosa vermelha, era o sinal para que nos reconhecessemos, de repente olho e vejo um homem de rosa vermelha! Corro para o bar mais próximo no hotel na rua em frente, peço um whisky duplo e conto as minhas peripécias ao garçon...um espelho, eu, eu, espera, eu não sou este homem, sou o garçon.
Ou como quando me embebedei com os meus amigos na minha festa de solteiro, um bolo gigante, uma suite no hotel, a gravata à volta da cabeça, fomos dançar para o bar, obrigaram-me a fazer uma lapdance a um amigo (risos), paguei uma rodada a todos, até ao homem do bar...um safari cola...que ele não bebeu porque eu não posso beber em serviço...mais uma vez este meu cérebro, este velho companheiro, a memória enganou-me.
Ou como quando descobri que a minha mulher estava grávida, não! Quando subi de posto na empresa, definitivamente não! Onde pedi a minha mulher e casamento, não! Onde paguei a uma puta para subir comigo ao quarto mais barato e fazer-me um broxe! NÃO, NÃO, NÃO...isto não sou eu, nada disto foi meu...quem sou eu então no meio disto tudo?! O corpo sem rosto, a pessoa sem nome, a voz sem som.
"Garçon, mais uma rodada e rapidinho que há aqui gente com sede!" É já senhor, é para já.
"E eu não entendo porque é que ele precisa de outra, eu não lhe chego?! Serei velha de mais?! Sou velha?!" Minha senhora tenho que fechar... "Vocês são todos iguais! TODOS" Minha senhora a sua conta! Espere, a conta!
"Garçon..." "Olhe desculpe..." "É um martini oh rapaz..." "O costume" "É o costume" "O costume" "Já sabe homem, é o costume"
Que se foda o vosso costume! E o meu costume?! E o meu costume?! Han?! E o meu costume? E o meu...costume? Alberto? E o teu costume? E o teu... (Chora)

domingo, 1 de agosto de 2010

Bom dia Liberdade!

Um dia comecei a escrever, encontrei um refúgio nas palavras, frases, interjeições, figuras de estilo... Encontrei a liberdade, a ilusão, um mundo onde nada me era proibido, onde não havia sonhos, mas sim realidade. Criei um pseudónimo para ser eu neste mundo sem consequências, mas agora dou por mim a pensar que o importante não é o que queremos fazer, mas sim o que fazemos.
Não estou de maneira alguma a menosprezar os sonhos, o que seria de nós sem eles, quero apenas transmitir e anunciar a minha mudança de atitude, basta de me ficar pelos sonhos, há que perseguir afincadamente a concretização.
Sonhei com uma partida, com uma mochila, com um comboio, com uma cidade, com experiências. Aconteceu! Sou uma pessoa transformada, deixei de ser a sonhadora, passei a ser o sonho! Foi a celebração de uma amizade, de uma idade, de uma estação, de uma expectativa, de uma ânsia insaciável!
Podia contar milhares de histórias que, desta vez, não seriam de todo inventadas, mas prefiro guardá-las para uma conversa de café num outro lugar, um diálogo e não este monólogo silencioso que faço incessantemente.
Também sonhei com liberdade, com pessoas interessantes, com um romance arrebatador, com a criação de laços, com experiências teatrais mais intimistas. Tive-o durante 6 dias, mas não durou 6 dias, durou 10, 15, 20, 30...dura, perdura...hei-de tê-lo sempre, porque uma vez vivido jamais poderá ser esquecido.
E agora, do alto deste pedestal no qual ainda me sinto, posso dizer que a minha atitude derrotista extremamente precipitada para a minha tenra idade, mudou por completo. Ainda há tanto por fazer, tantas pessoas para fazer rir, tantos locais onde sentir a chuva na pele, tantas lágrimas para derramar, tantos beijos para dar e receber, tanta música para dançar e cantar, tanta bebida para beber, tantos filmes para ver e fazer, tantas páginas para folhear, tantas lutas para travar, tantas cordas para puxar, tanto chão para pisar descalça, tanta conexão com esta terra que é nossa!
Eu não almejo a fama, não deliro por dinheiro, não suspiro por luxo ou glamour, não me contento com uma vida simples e pacata, nem sei se ela existe. O que eu quero é fazer a diferença, seja com as minhas palavras, com a minha voz, com as minhas cores, com a minha arte, com o meu amor... Seja com uma multidão num auditório ou numa sala de cinema, seja com o pastor que me dá informações de como chegar a uma terra qualquer, seja com a minha família, seja contigo que, ingenuamente, pensas que estás a ler um texto banal, escrito num banal domingo, quando na verdade me estás a ler a MIM, tudo o que represento, tudo o que me importa espalhado aqui. Muito prazer, sou a Laura, a Verónica, a Sophia, o John, o Daniel, sou TU...

segunda-feira, 21 de junho de 2010

A Eterna Noite de 18 de Junho

Numa casa, numa sala, um móvel repleto de livros, histórias do ontem e do amanhã, ficção, realidade, gravuras, colecções que impõem respeito pela sua capa dura e o pormenor do relevo das letras nas suas capas. Livros grandes, livros pequenos. Organizados alfabeticamente em algumas prateleiras, outros lado a lado por pertencerem à mesma colecção, umas prateleiras por temas - filosofia, história, romances, teatro...E há os que são uma família, pertencem todos ao mesmo autor e com orgulho ocupam uma prateleira inteira, uma prateleira de destaque até.
Hoje nesta casa, nesta sala, neste móvel, numa prateleira em específico, havia muita tristeza entre os ocupantes, não havia diferença entre o que os romances, as peças teatrais, os contos, os poemas sentiam. Aquela prateleira hoje parecia mais melancólica do que em todos os outros dias, hoje o pó que diariamente confere algum je ne sais quoi aos livros, hoje só fazia transparecer a tristeza que havia naquelas páginas.
Era dia 18 do quente mês de Junho, o sol que se escondera há poucas horas atrás começou por penetrar janelas e cortinados, alertando que o dia chegara, estava na hora de, na tal sala, os cristais começarem a brilhar mais, os quadros tornarem as suas cores mais vivas, as fotos representarem sem cansaço do tempo que já passou, aquele passado que já parece tão longínquo, a hora das almofadas ficarem mais aconchegantes para os que durante o dia viessem, as plantas erguerem triunfantes as suas flores e folhas, as velas aromáticas reunirem forças para emanar os seus perfumes durante o dia, os móveis que durante a noite acolheram o pó, agora despedem-se dele até à noite e os maravilhosos livros que enchem uma parede chegam até à ponta, até ao limite da prateleira na esperança de serem folheados nem que seja durante cinco minutos, ou até poderem sentir o toque de um dedo suave nas suas lombadas, enquanto alguém procura o que realmente deseja.
Ouve-se o despertador, ela acorda, são sete da manhã. Ele acorda, toma o pequeno almoço enquanto ela passa a ferro e vêem as notícias. A jovem ainda dorme. Eles vêm que hoje o céu vai estar limpo e o sol vai brilhar. Ele toma banho, veste-se e vai trabalhar. Ela continua a lida da casa, ajuda, com um sorriso, os que se tentaram aperaltar com a chegada do sol, limpa os cristais, ajusta as molduras das fotos e dos quadros, acende as velas, ajeita as almofadas, rega as plantas, observa com um olhar de admiração os livros, fala com eles até, retira-lhes os últimos vestígios de pó, faz-lhes cócegas até.
Por volta das onze acorda o ser mais jovem da casa, fala com a mulher, senta-se no sofá, desfruta das almofadas, dos aromas que circundam pela casa, ri-se para os livros também, ajeita mais uma vez os quadros, que lhe parecem tortos, perde-se nas fotos, o brilho dos cristais ferem-lhe os olhos. Foi a primeira a usufruir da preparação meticulosa.
Ao meio-dia e meio ligam a televisão - Notícia de última hora, morreu José Saramago.
Este já não pode ser um dia tão simples, com um céu tão límpido e um sol tão brilhante como a metereologia prometeu. Sobre a pacata casa abate-se um silêncio mórbido. E na prateleira onde tantos livros de um homem tão genial como José Saramago se encontram podem ver-se lágrimas escorrer pelas páginas que hoje de manhã esperavam tudo menos isto, a morte do criador, do pai, de quem lhes deu vida. Mas o pior era não se poderem manifestar...teriam que esperar até à noite, quando a escuridão assola o mundo.
Este foi um dia que não teve 24 horas, mas sim o dobro, o triplo, o quádruplo, o quintuplo...
Como se não bastasse saberem da morte do seu pai desta forma, tiveram que assistir o dia inteiro a bastantes idiotas falar e prestar homenagem a um homem que não conheciam profundamente, não como eles! Que falta de consideração por parte destes humanos que demonstraram mais uma vez o egoísmo que, inevitavelmente, lhes corre nas veias. Os livros precisavam era de paz...
As palavras até amanhã ecoavam pela casa, finalmente...engolidos na escuridão, recuados nos confins da sua prateleira podiam agora falar, mas nada...um silêncio ensurdecedor, irónico não? Alguém tinha que dar o primeiro passo.
CAIM: Bem...eu não queria ser o primeiro a falar, sendo o mais jovem...mas se ninguém se importar.
A CAVERNA: Penso que falo em nome de todos quando peço que continues.
CAIM: Perdemos hoje o nosso pai, quem nos deixou nascer e dizer algo ao mundo. Tanto eu como o ENVAGELHO SEGUNDO JESUS CRISTO causámos muita polémica, talvez desnecessária...mas ambos viemos abanar este mundo tão dominado pela religião. O nosso Saramago era um homem notável por esta capacidade de abominar dogmas...Vai fazer falta ao mundo e a nós, porque quando fui escrito fui mal recebido por uns e bem recebido por outros e vivia assim numa inconstância e depois conheci o meu colega e amigo acima referido e pude descansar finalmente, ele explicou-me tudo...e agora eu, provavelmente, não vou ter a oportunidade de ajudar alguém dos nossos...se é que me entendem (chora), desculpem.
ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA: Vamos ter calma, será que é mesmo assim que Saramago gostava que as suas obras reagissem à sua partida? Nós somos uma extensão dele, o seu legado, não entendem que as suas ideologias permanecerão vivas enquanto nós existirmos?! Ele está aqui, eu sinto-o.
AS INTERMITÊNCIAS DA MORTE: (A rir-se) Posso confessar-vos uma coisa?
(Todos acenam afirmativamente) Depois de eu vir ao mundo, pensei que não havia mesmo morte, por isso, devo dizer que ainda estou um pouco em estado de choque. Mas estou...feliz, muito feliz até.
A JANGADA DE PEDRA: O quê?! Mas tu estás bem?
AS INTERMITÊNCIAS DA MORTE: Sim. Pensem um pouco, vocês conhecem-me, vocês sabem como o mundo seria se não houvesse morte. É um pouco como se não houvesse visão (lança um olhar cúmplice a ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA) caos total! O ser humano era como se se extinguisse, se afundasse na sua loucura!
MEMORIAL DO CONVENTO: Tem lógica...mas porquê ele?! Há biliões de pessoas no mundo e tantos tão maus...
O ANO DA MORTE DE RICARDO REIS: (meio a grunhir)Lá está...
A VIAGEM DO ELEFANTE: Lá está?
O ANO DA MORTE DE RICARDO REIS: O pai morreu porque estava cansado...dessas pessoas. Ele já fez tudo o que podia, agora chegou a hora de descansar...
ENSAIO SOBRE A LUCIDEZ: Vou ter saudades...
O HOMEM DUPLICADO: Fomos escritos com muito sentimento. Paixão pela vida e pelas suas controvésias...tanta dedicação. Lembro-me dos seus maneirismos enquanto escrevia cada palavra.
TODOS OS NOMES: E lembram-se quando...
(risos)
E os livros aproveitaram esta noite quente para homenagear um grande homem, José Saramago, enquanto um mundo dormia, dezenas de outros mundos confluíam nesta prateleira e riam, choravam, amavam, odiavam. E de novo chegou o dia e agora, gostava de dizer isto com certeza e racionalidade, mas como é impossível fico pela incerteza e irracionalidade então assim, neste mundo desprovido de realidade posso afirmar: "No dia seguinte ninguém morreu"...
Um eterno obrigada a José Saramago (16/11/1922 - 18/06/2010) por me ajudar a crescer

domingo, 13 de junho de 2010

Ode aos sentidos

A cada dia que passa, cada rosto que vislumbro, cada aroma doce que sinto, cada sabor exótico do qual desfruto, cada som melódico que escuto, cada intuição que tenho, sinto uma necessidade absolutamente iminente de fazer um elogio aos sentidos. Pois o que seria da vivência humana sem eles? Quero homenageá-los, prezá-los invés de menosprezá-los, pois nunca se sabe se um dia não terei saudades de um ou mais do que um deles? E, isto agora sei de certeza, quando um dia já não os puder usar? Já será tarde de mais para os engrandecer e colocar num merecido pedestal. Pois aqui deixo um agradecimento, vou falar de seis, cinco são conhecidos e atenção, provados cientificamente, mas como eu acho que a ciência é sobrestimada também vou dar o devido valor ao sexto sentido, há que manter os horizontes expandidos e em contínua expansão...



Vejo-te, sinto-te...


"Acordo para o mundo, no entanto escolho não abrir os olhos de imediato, sinto-me uma criança a desembrulhar um presente de natal, o desejo é prolongar aquele momento o mais tempo possível, retirar o laço, a fita cola tudo feito meticulosamente. Pois para mim, acordar todos os dias e poder ver a claridade do sol matinal, é divinal, é como receber um prenda, uma dádiva.
Cientificamente falando o olho é órgão animal que detecta a luz e transforma-a em impulsos eléctricos proporcionando ao ser o sentido da visão. Bla bla bla, é assim que os meus olhos lêem estas frases. Ver é muito mais do que isso, observar, olhar, é arrebatador, provoca-nos dor, alegria, distingue-nos de simples autómatos! Eu quando olho não tenho um radar que me diz que algo é verde, ou que alguém é do sexo masculino e tem 1,70 metros! Eu vejo as cores, sinto-as, alteram o meu modo de estar, de viver e sentir o mundo!
Não pensem que sou egoísta, limitada, exagerada talvez, ou até fundamentalista que pensa que a vida sem visão não faz sentido! Pelo contrário, viver sem ver não implica viver sem sentir, pode ser uma adversidade, mas para isso é que serve a capacidade de ultrapassar obstáculos, não temos visão temos imaginação, não será um bom substituto? "



Tacteando pelo mundo fora...


"Já gatinha a nossa bebé!
Cortei-me!
Queimei-me!
Meninos sintam a textura desta rocha!
O meu pai deu-me uma estalada!


Ontem demos a mão pela primeira vez!
Qual o tecido mais suave?
Senti o seu cabelo sedoso escorregar-me pelos dedos!
Decorei cada pormenor do seu rosto bem delineado!
Entreguei-me ao prazer carnal, as nossas mãos inseguras que percorriam os nossos corpos nus, desprotegidos, como no dia que chegámos ao mundo..."



Fechem os olhos, oiçam, desfrutem...




Saboreie a Paixão de Chocolate



"Ingredientes

-1 colher (de sopa) de manteiga;

-150 g de nozes cortadas em 4 partes;

-50 g de uvas de passas pretas;

-1 colher (de sopa) de hortelã picada;

-50 ml de rum;

-1 lata de leite condensado;

-1 lata de creme de leite;

-200 g de chocolate meio amargo picado.

Modo de preparação

1º: Numa panela em fogo médio, derreta a manteiga e aqueça as nozes cortadas em quatro partes e as passas de uva preta durante 2 minutos. Junte hortelã picada e mexa. À parte e fora do fogo, coloque o rum numa concha e ateie fogo ao rum, deite o rum na panela e misture até o fogo apagar.

2º: Acrescente o leite condensado e o creme de leite e mexa com uma colher de pau até ferver. Apague o lume e acrescente o chocolate meio amargo picado até formar um creme espesso. Sirva imediatamente com gelado de morango."

Inspiro, expiro, suspiro...

"Considero-me uma pessoa de cheiros, no entanto também sou, infelizmente, uma pessoa distraída, parece que por vezes é necessário alertarem-me para os aromas. O sítio onde já encontrei os melhores aromas foi, não num jardim repleto de flores, não numa perfumaria, nem na praia, nem num rio, nem num restaurante, foi no último sítio que se podia esperar, no metro! Um misto de multiculturalidade num meio de transporte público, cheirava crianças, sentia os perfumes característicos de senhoras de meia idade, os odores notórios de um dia de trabalho, os perfumes pujantes de rapazes adolescentes à espera de se fazerem notar, o cheiro de cabelos, de carteiras, de tabaco, uma multiplicidade simplesmente genial e na qual me perderia um dia inteiro, cerrar os olhos e imaginar histórias de aromas...(inspiro, expiro, suspiro)"

Eu tenho-o e vocês?

Chamam-lhe o sexto sentido feminino, mas eu vejo-o em ambos os sexos.

Todos temos intuições, premonições, algo que nos sussurra ao ouvido acontecimentos próximos, respostas certas.

Coincidência? Sim.

Sempre coincidência? Não. (Risos)

Ergam assim os copos nesta ode aos sentidos, vejam como a espuma da champanhe borbulha nos belos copos do serviço de cristal, toquem nos relevos pormenorizados destes exemplares de uma, também, arte. Oiçam o tilintar dos copos a bater uns nos outros, o tchim, tchim, saboreiem a bebida digna das festas, degustem todos os sabores reunidos em poucos cl de líquido, sintam o aroma característico não só do que bebem, mas do que vos rodeia e por fim confiem quando sentem que alguém vai partir um copo dentro de alguns segundos ;)

terça-feira, 1 de junho de 2010

Pensamentos sem nexo, nem desejo de nexo...

Sinto que tenho algo a dizer, não sei o quê, mas sinto as palavras simplesmente fluírem, a caírem no abismo, percorrerem os meus nervos, até chegarem à extensão do meu corpo, os meus finos dedos.
A minha cabeça é, maior parte das vezes um tumulto de emoções, nada melhor do que uma erupção para fazer uma analogia e como um grande ídolo meu (a minha progenitora) outro dia me disse: "Às vezes queres escrever, mas os teus dedos, o teclado do computador, a caneta, a tinta da caneta, o lápis, a grafite o que quer que seja, simplesmente não te conseguem acompanhar". É verdade e por esta mesma razão há tanto que fica por dizer, pensemos em grandes autores, pensadores que arriscarem despejar o seu conteúdo cerebral, a sua alma algures, o que é que se perdeu? Há um arquivo para o que se queria dizer e não foi dito, ou essas ideias passam imediatamente para as entrelinhas? Será que se relermos "Assim falou Zaratustra", por exemplo, vamos descobrir uma nova teoria completamente alternativa? Um livro dentro de um livro?
Como a minha frágil mente já divagou, nestes dois minutos de processamento de imagens e de ideias e tudo assim do nada.
Sentada, no quarto, rodeada de móveis, peluches, aparelhos electrónicos, filmes, CD's, carteiras, perfumes, livros, roupa, muitas, mas mesmo muitas recordações, nos mais variados formatos...
Olho para a porta entreaberta, a luz cor-de-rosa do meu quarto ilumina a escuridão que assombra o meu corredor. Aquele corredor que supostamente me liga à minha casa, mas agora sinto o corredor aumentar o seu comprimento, a minha casa está a tornar-se a do Tim Burton (risos). O meu quarto é agora a única divisão do universo, isto é o mundo, as pessoas as coisas! Os escassos bonecos que sobreviveram à fase "Sou adolescente, bonecos fora daqui" observam-me, por vezes ainda tento comprovar a minha teoria e de todos os petizes a certa altura da vida, será que quando viramos costas eles vivem, falam, mexem-se?! Então dou por mim a sair porta fora, com as mãos atrás das costas, a assobiar uma cantilena agradável, cerro a porta e numa viragem súbita e inesperada, abro novamente a porta e: APANHEI-VOS! E é então que se ouvem grilos...ai como eles se devem rir por dentro estes mistos de algodão e tecido!
Depois há os roupões por trás da minha porta, agora vocês perguntam qual é agora o trauma desta com roupões? Absolutamente nenhum, só que quando somos crianças gostamos que nos contem histórias e há sempre aquela noite em que não queremos que a história esteja num livro onde toda a gente a possa ler, nem queremos que seja uma já badalada história que já tem todos os pormenores esgotados, queremos uma história inventada por ti mãe/pai!
Ora bem, houve uma noite que a minha mãe me contou a história de dois pastorinhos que andavam com o seu rebanho num monte absolutamente tenebroso! Chovia muito, relâmpagos pareciam cercá-los e houve uma das ovelhinhas que fugiu, os irmãos pastorinhos tentaram persegui-la pois não podiam voltar a casa sem uma ovelha senão os pais não os perdoavam! Ao procurarem a ovelhinha acabaram por perder todo o rebanho, a pequena menina chorava e o irmão tentava reconfortá-la. Acabaram por ir para casa e quando chegaram estranharam, mas os seus pais não estavam lá, aproveitaram a ocasião para se fecharem no quarto a tentar arranjar uma solução e foi então que as peças de roupa estendidas na cama que constituíam os seus pijamas (calças, camisas e roupões) ganharam vida, pareciam vestir alguém, mas na verdade não! Como podem imaginar foi a animação total e por breves momentos esqueceram-se os problemas, uma droga leve esta, a alegria.
Isto é o máximo que me lembro da história, achei absolutamente inovadora esta história dos pijamas dançantes, ainda hoje me rio disso com a minha mãe...
Bem quem diria que iria acabar a noite neste estado de nostalgia puro e duro, a coçar a cabeça e a rir de memórias tão genuínas e tão duradouras, ao que a desarrumação do meu pacato covil de lobinha me leva.
Vês mãe, será assim tão má a desorganização levada ao extremo, continuará a ser má mesmo quando nos proporciona momentos de inspiração e êxtase como este?
Olhem o corredor encurtou muito, já vejo a resto da casa, o mundo já não existe só aqui, a minha cabeça desacelera, o turbilhão acalma, o teclado soa menos vezes e, é então que...shiu

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Entrevista com Insónia

(Insónia entra no quarto, algo vacilante, senta-se no sofá de veludo, observa a divisão atenciosamente, fixa o olhar num relógio de parede, a hora marcada - 4 da manhã. Acende um cigarro, dá um golo no copo de água que está na mesa, recosta-se no sofá, parece pronta.)
Entrevistadora: Antes de mais obrigada por ter comparecido e estar disposta a responder a algumas das minhas perguntas. Porque não começa por nos contar a sua história?
Insónia: Eu sei que a minha visita foi algo imposta, sinto isso de todas as vezes que visito alguém...Eu sou uma daquelas coisas que existe no mundo que ninguém na verdade aprecia, sou como a morte, ninguém nos dá valor. Somos, como costumo dizer, os opostos depreciativos da sociedade, sim hoje em dia toda a gente tem horror a alguns antónimos e utiliza-os depreciativamente. Se eu pedisse a alguém para me dar um oposto diria morte que é antónimo de vida e não vida que é contrário de morte. Bem, mas enfim, tudo isto existe, tu isto é triste, tudo isto é fado... (Risos)
Quanto à minha história, na verdade não há muito para contar, existo desde que existe o dormir, o sono, existo portanto desde que o mundo existe, há sempre alguém para atormentar, é assim que as pessoas me vêem, como um tormento.
Entrevistadora: Tenho a certeza que há excepções, mas qual foi a primeira vez que visitou alguém?
Insónia: A primeira vez que decidi ligar-me a alguém foi nos primórdios da raça humana, jovem, vigorosa, sonhadora, encontrava interesse nas feições e atitudes daquele ser, ainda que muito rudimentar, tão curioso e com uma capacidade de aprendizagem fenomenal. Nesta altura o Homem ainda era nómada, deambulava pelo planeta Terra em busca de meios de sobrevivência. Foi numa calma, quente e estrelada noite, que avistei um grupo destes seres aglomerados numa gruta, preparavam-se para se entregarem ao sono, experimentavam agora a tranquilidade do silêncio e a horizontalidade dos seus corpos pouco cobertos. Escolhi um deles e entrei na sua mente, a reacção não foi a que eu esperava, eu queria partilha, entrega e só obtive alguns grunhidos, um rebolar no chão e comichão em vários sítios do corpo do qual o ser imediatamente tratou. Reagiu como se não desejasse a minha companhia, mas eu não desisti, tentei exasperadamente e inúmeras vezes tentar chamar a sua atenção como uma criança entusiasmada por mostrar as suas capacidades a mergulhar para a piscina faz com o seu pai, a reacção foi também a mesma de um pai, fui ignorada. Após ter passado a noite a tentar fazer-me notar, com o raiar do sol todos os outros acordaram, estava na hora de partir. A pessoa com a qual eu tinha passado a noite estava exausta e não sei se devido à sua fraca capacidade mental, não se conseguia levantar, foi então abandonado...a lei da sobrevivência. Eu entreguei um homem aos braços do sono eterno pelo meu egoísmo e inexperiência, senti-me para sempre culpada. (Chora)
Entrevistadora: É natural, mas a culpa não foi sua. Quando voltou a ter coragem para se ligar a alguém.
Insónia: Levou muito tempo até eu conseguir recuperar e desejar estabelecer contacto outra vez, alguns séculos depois soube que estávamos na época dos grandes pensadores, os chamados filósofos que começaram por duvidar de tudo, queriam saber o que parecia inexplicável a olho nu. Estudavam muito, sabiam muito, dominavam imensas áreas do saber. Eu queria beber daqueles seres tudo o que eles me pudessem dar para matar a minha sede, e assim fiz. Assisti de perto às grandes discussões nocturnas entre Sócrates e Platão causadas pela minha presença, o desvendar dos segredos como a origem do conhecimento! Entrei na mente de Aristóteles, na de Hypatia quando ela já falava do heliocentrismo, foi numa noite comigo que Pitágoras concluiu o seu teorema! Presenciei as grandes batalhas políticas pela democracia, tão precoce...Mais tarde contactei com o primeiro grande revolucionário político, social, cultural - Jesus, uma mente que queria mudar o mundo antes que este se auto destruísse!
Acompanhei de perto os que na idade média escreveram livros, criaram movimentos artísticos como o renascimento, reinventaram teorias que eram punidas...Eu estava na invenção do primeiro filme a preto e branco, do primeiro filme a cores, nas grandes músicas dos séculos! Estive nas noites de ensaios desenfreados que duravam horas quer nos conhecidos palcos da Broadway, quer nos simples palcos da rua e do mundo!
Conheci os actores, encenadores, filósofos, historiadores, físicos, matemáticos, políticos que moldaram o mundo!
Entrevistadora: Fascinante...
Insónia: Parece fascinante, mas há muita podridão pelo mundo fora e o problema é que eu corroborei com essa podridão faço tanto parte do estrelato do palco do mundo como dos bichos da madeira que destroem lentamente esse palco! Eu estava com os milhões e milhões de soldados que chacinavam aldeias inteiras repletas de mulheres e crianças, idosos e restantes graúdos, quando à noite penetravam nas aldeias e violavam o que lhes aparecia à frente eu estava lá! Cada golpe, cada gota de sangue, mancha ainda a minha pele! Queimei grandes mentes com a inquisição! E nas duas grandes guerras do século XX eu estava lá, junto das mentes maquiavélicas que durante a noite engendravam esquemas para magoar quem quer que fosse por ganância! Eu vivi nos campos de concentração diariamente, porque ai não se dorme, mesmo que se queira, ai não era eu que impunha a minha presença, era chamada para confortá-los, aos que lentamente caminhavam para a morte ou para o resto de uma vida repleta de traumas! Se calhar se eu não existisse também nada disto existia, porque toda a gente estava a dormir, não tinham que pensar em fazer mal, por vingança, ou então pensavam na mesma no mal enquanto dormiam...toda a gente pensa que eu sou o oposto mau, mas os sonhos enquanto dormimos também o podem ser!
Entrevistadora: Penso que independentemente de existir ou não essas pessoas iam fazer o mesmo, corria-lhes e corre-lhes no sangue. Continue a falar das suas conquistas por favor?
Insónia: Tenho conquistas das quais ainda não falei e tenho certeza que estas são pessoas muito mais dignas de fazer parte da grande história mundial do que alguns que efectivamente fazem, os pequenos gestos valem muito.
Gosto muito de fazer os apaixonados ligarem-se, um elo indestrutível que se cria numa noite prolongada de amor, que nos tira a razão! Num quarto, numa praia, num jardim, não interessa, desde que seja sob a noite cerrada e claro eu esteja lá, é difícil haver este tipo de entrega enquanto se dorme (risos)!
De vez em quando, entro na mente de um bebezinho, um ser tão frágil e pacífico que quando eu chego irrompe em gritos e lágrimas, mas não faz mal porque vale a pena escutar aquele som agudo para depois ver um pai ensonado pegar com delicadeza no seu pequeno, beijá-lo, acarinhá-lo, falar com ele como se se entendessem um ao outro, abraçar o seu rebento até ele acalmar, ou seja até eu ir embora...
É para mim uma maravilha ligar-me aos jovens, são os que mais facilmente me deixam entrar, porque poucos jovens gostam de dormir quando a noite é quente e cheia de promessas de diversão, calor, música, risos, choro ou quando a noite é fria e repleta de um manto branco, de um bafo divertido libertado de uma boca com lábios roxos, narizinho vermelho mas alma muito quente. Gosto de ver as saídas de amigos que se prolongam comigo pela noite fora, os concertos, as bebidas, os cigarros, os gritos, a rouquidão, a loucura, os beijos quentes dos apaixonados, o deboche saudável de uma adolescência que vai acabar!
Gosto das festas de pijama, em que se contam segredos, comem pipocas, vêem os melhores filmes de sempre e também os piores filmes de sempre (risos). Gosto quando as pessoas reagem à minha presença com um passeio nocturno, com um sorriso pelo que estão a pensar, com o ouvir da música que nos arrepia.
Ultimamente tenho visitado uma jovem adolescente à qual acho piada, porque dela já tive muitas reacções diferentes, cada dia me surpreende, não consigo deixá-la...a primeira vez até me assustou um bocado, a minha presença levou-a a pensar, pensar muito, na escuridão do seu quarto pensou na morte, pensou nos amigos que se vão embora, pensou no facto de ela um dia ir embora, engrandeceu imenso os problemas minímos que a atormentavam. Fiquei assustada, pensei não voltar, mas tive que voltar e a atitude dela mudou, a morte agora via-a como uma oposto, assim como a vida também é; os amigos falava com eles de modo a criar mais momentos e recordações de conversas memoráveis que pudesse guardar para sempre; ela ir embora, enfim mais uma etapa, que poderá ser muito boa; os problemas encolheram subitamente, recebeu-me com música um dia...e hoje, fez-me uma entrevista, quis saber de mim, agora vou-me embora, ela vai dormir finalmente.
Boa Noite Laura.
Porque todas as coisas na vida têm um lado bom, até a insónia...

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Ele ...

Todos os dias o mundo acorda e, todos os dias, o ser Humano acorda para o mundo, cada indíviduo de maneira diferente, obviamente.
Há os que acordam para um céu nublado e amaldiçoam o tempo, a hora e o motivo pelo qual acordam - trabalho. A questão é que estes mesmos que amaldiçoam um céu nublado, amaldiçoam o céu demasiado azul, a hora e o motivo novamente. Há as pessoas que podem acordar à hora que querem e pensam no facto de terem falhado na vida ou de os obrigarem a falhar na vida... Há os que nem sequer acordam...qual é o objectivo de acordar?
E depois, existe ele, que é diferente de todas as pessoas, que não acorda todos os dias para o mundo, mas que acorda todos os dias para mudar o mundo! Sabe encontrar beleza na chuva mais violenta que é, nada mais que, um regador mundial. Aprecia o frio que enregela os ossos, mas que parece estimular mais o calor do seu espírito. Vê na neve a pureza e ingenuidade do mundo e também aprecia a trovoada que mostra a violência que apesar de não ser boa é uma realidade.
Ele acorda e a cabeça dele é um turbilhão, está rodeado pelos grandes pensadores e lutadores, dá os bons dias a Che, um aceno a Martin Luther King, um aperto de mão a Ghandi...começa o dia com uma música na cabeça, cada dia uma nova personagem está a tocar a sua guitarra, que grandes nomes da música já deram os seus melhores concertos ali! Quando sai de casa não amaldiçoa o seu destino, simplesmente agradece por estar vivo...sente os aromas do mundo, sorri entusiasticamente e inicia a sua caminhada, diz bom dia a tudo o que vive e não vive, bom dia sol, bom dia céu, bom dia pequena formiga, bom dia pedra, bom dia flor és gloriosa e colhe-a! Começa por oferecer a flor a quem de direito a merece, a sua felicidade passa pela felicidade dela, é tão altruísta que não pede nada em troca, só um sorriso, um olhar, um beijo, uma palavra pouco encorajadora já é muito...Passa o dia na escola a aprender, mas, principalmente, a ensinar, a melhorar a escola cujas ideologias deixam um pouco a desejar. E depois espalha alegria pela pequena cidade, pelos pequenos cafés, pela biblioteca, pelos jardins, por onde passa. À noite pode ir para casa escrever e ouvir música, participar num espectáculo de teatro assistir a espectáculos de teatro, até mais do que uma vez...acabar o dia em amena cavaqueira com amigos, partilhar sonhos, histórias, gargalhadas, ideologias, ou apenas silêncios entre um cigarro e outro...Cada dia tem um final ou um começo imprevisível.
Ele quando se deita pode pensar hoje mudei um bocadinho o mundo e é com esta vivência tranquila e que por alguns até passa despercebida que ele vai ser o super herói que nos vai salvar a todos.
É mais ou menos isto:



Porque ela nunca escreveu, escrevi eu...
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domingo, 25 de abril de 2010

25 de Abril Sempre, Fascismo Nunca Mais!

25 de Abril de 2010
A pergunta mais comum neste dia é: "Onde é que estava no 25 de Abril de 1974?" bem para mim esta é uma pergunta, supostamente fácil, pois eu, feliz ou infelizmente, ainda não existia. Resta-me então recorrer à minha imaginação e colocar-me neste passado tão remoto.
24 de Abril de 1974
06:50
Mais um dia primaveril na cidade da Covilhã, é muito cedo, mas espera-me um dia inteiro de trabalho. Se pudesse queixava-me desta vida monótona, mas parece que nem isso me é permitido, apesar de tudo as coisas cheiram a mudança, paira no ar um sentimento de revolta, contudo eu não passo de uma mulher, que é que sei de movimentos rebeldes? Absorta nestes pensamentos, parada sentada na cama a olhar a serra da minha janela...a porta do meu quarto abre, a minha mãe grita e pergunta-me se quero ser despedida?! Na minha mente a resposta é sim, mas o que reproduzo é bem diferente.
07:10-9:00
Preparo-me e vou a pé para a cidade, trabalho numa das poucas lojas da cidade, o horário é cansativo e o pagamento...enfim...dá para ajudar lá em casa e para ir ao cinema e ao teatro de vez em quando. Hoje por acaso vem cá uma companhia, que vem cá de 4 em 4 meses, eles são fantásticos, ou melhor ele... bem vou revê-los, que saudades.
09:20-13:00
O dia passa na normalidade, as senhoras finas da Covilhã a visitar a pequena loja, nós a atendermos com a maior da simpatia e dedicação e recebemos, por vezes, em troca desprezo...mas não me importo, pois sei que um dia tudo vai mudar e eu vou sair daqui.
13:10-14:15
Tenho que ir fazer o almoço para os meus pais que saem a esta hora das fábricas e para os meus irmãos que andam a estudar...a casa está silenciosa, demasiado para meu gosto, vou vasculhar os meus vinis e ei-lo, o meu vinil favorito trazido da minha tia de França, Juliette Gréco e sim preparo um arroz de atum ao som de Sous Le Ciel de Paris, canto pela pequena cozinha, danço, pela casa, uso a colher de pau como microfone...os meus 15 minutos de fama, sem ninguém para aplaudir.
De repente oiço a porta, tiro imediatamente o vinil, os meus pais não gostam que eu oiça música francesa.
O almoço decorre em silêncio, pois à mesa não se fala, arrumo a cozinha e saio de casa a correr, hoje janto num café lá perto para poder estar com os actores e meus amigos da companhia de teatro que sempre me tentam levar com eles...
15:00
À tarde chego à loja parece que hoje estou sozinha com o patrão, o que não me agrada nada...o olhar constante e descarado que me percorre o corpo, ser despida com os olhos...mal posso esperar a hora de saída.
19:00
Hora de ir para o café esperá-los, passo pela casa de banho para dar um jeito rápido ao cabelo e à maquilhagem . Quando volto à mesa já eles lá estão, corro para abraçá-lo, quero dizer abraçá-los e a amena cavaqueira começa...ali sou feliz, nos seus braços a ouvi-los atentamente e até a intervir.
21:00-22:45
Vou com eles e assisto à peça dos bastidores, sei o texto de cor, uma noite linda. Terminamos a noite a caminhar até minha casa, eles falam, sem medo, o que acho fenomenal, de um rumor de mudança...
22:55-00:00
Chego a casa, ligo muito baixinho o rádio e começo a ouvir o "E Depois do Adeus", canto baixinho enquanto fumo um cigarro à janela e vejo-os afastar-se de minha casa, repito então também baixinho para mim: mudança, mudança, mudança ...
00:20
Grândola Vila Morena
25 de Abril de 1974

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Ups !

Quando somos apanhados desprevenidos num turbilhão de emoções, planos (falhados ou não), dias inesqueciveis, outros para esquecer, colocamos em segundo plano coisas que nos fazem tão bem...
Tinha tantas ideias, tantos momentos que gostava de embelezar e gravar num local chamado Sapatos de Rebuçado. Sinto que me tinha esquecido do meu caminho até aqui, até ao sitío onde tudo é possível e ultimamente a razão pela qual não encontrava o caminho era por estar ocupada à procura do meu sapato de rebuçado que, literalmente, perdi. Ainda não o encontrei, mas ao menos consegui chegar aqui.
Tudo começou quando deixei a casa amarela pela última vez no dia 2 de Abril de 2009 e eu caminhava com o objectivo de chegar à fábrica de fazer sonhos, tudo por esta zona estava colorido repleto de personagens e eu deixei-me levar por elas...inspirei-me no mundo de sonho do Dr.Parnassus enquanto ele tentava enganar o diabo, perdi-me por trás daquele espelho mágico onde vi o meu imaginário! Um grande palco, com uma luz ténue à espera de ser ocupada, uma plateia ansiosa pela chegada...de Laura! Ouvia as palmas e os olhares solenes e toda eu estremecia...
Depois como que de repente alguém estalou os dedos e eu estava no bom caminho, mas quando dei por mim enfrentava um drama psicológico preocupante, estava isolada, numa ilha onde todos me faziam crer que era louca, um pesadelo, ou...uma verdade? De repente Shutter Island começou a ser destruída por um bando de monstrinhos liderados por um rapazinho desobediente, fugi, mas desnecessariamente, eram todos tão amigáveis!
Comecei a ouvir música, francesa, maravilhosa, voei até lá, uma rapariga tão entusiasmada como eu ouvia e cantarolava...fui com ela a Paris, fiz com ela parte de um esquema mesquinho, mas requintado, fui, com ela, magoada...esta história lembrou um romance de Janet Frame, aquela escritora tão pacata, recatada e talvez ingénua que deixava que lhe dissessem como viver a vida...
Revisitei mais uma vez aquela casa que transpira glamour e fui a nona mulher a cantar, chorar, gritar, brilhar naquele sitío, logo de seguida fui parar a um universo estranho e incestuoso de Jacques Demy E...POW...choveu muita coca-cola e houve um prenúncio de pipocas!
Estava cansada, mas ainda fui atraída por um charmoso chapeleiro para um chá interminável quando, lá muito ao fundo vi uma jovem negra, grávida, com ar de sofrimento, corri para ela e tentei ajudá-la pois ela carregava um ser, algo que há dezoito anos não acontecia.
De repente não havia mais universos para visitar, tudo se evaporava, de um momento para o outro. Quando retomei o meu caminho para a, por vezes, malfadada fábrica, vi que tinha perdido o meu sapato de rebuçado, ando desde então a tentar encontrá-lo...vim aqui redimir-me pela minha escassa presença e atenção e pedir...ajuda :(

Aos filmes da minha Páscoa e ao meu pé esquerdo ^^

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Espelho meu, espelho meu, haverá alguém mais belo do que eu?

Quando estamos rodeados de determinadas pessoas, num determinado local, a uma determinada hora, surgem também determinados assuntos, que se não estivessem reunidas as condições perfeitas, nunca na vida nos lembraríamos de tal coisa.

Pois as condições que levaram a esta ideia são fáceis de reunir, basta um adorável grupo de cinco amigos, numa casa em Lisboa, mais precisamente Linda-Velha (751), um quarto de casal, porta fechada, madrugada, muitos pijamas, muitas gargalhadas, uns encostados à cabeceira, outros no local oposto, cartas espalhadas, cigarros apagados no cinzeiro, pessoas sonolentas, outras nem por isso...imaginem portanto diálogos entre sonâmbulos e seres bastante despertos, misturar duas dimensões: a realidade e o sonho!

Ora o assunto que mais me fascinou nessa noite de deboche saudável, foi quando alguém, já não sei porquê, indagou "E se nos apaixonássemos por nós mesmos?".

Essa ideia pairou na minha mente os próximos dias e tive oportunidade de reflectir um pouco. Normalmente nunca se fala desse amor, pois não é considerado amor, mas talvez egocentrismo, fala-se de Narciso e da sua obsessão pelo seu aspecto que o levou à morte por afogamento, mas o que eu agora estou a tentar fazer é imaginar não este amor físico, mas sim um amor muito mais profundo...será possível alguém apaixonar-se por si próprio...crescer sempre à procura de alguém inteligente, que goste das mesmas coisas que nós e nos mostre outras, alguém sensível, romântico, dado à discussão (este é um ideal, entre muitos, claro). Uma procura incessante que só leva a relações falhadas e desgostos amorosos. E se este ideal tão desejado estiver tão perto de nós que não o conseguimos ver?! Esta pessoa está connosco constantemente e eternamente, nunca nos poderá deixar, nascemos juntos e morremos juntos e para a vermos basta uma superfície polida o suficiente...Chamem-me lunática...chamem a esta interrogação uma abominação, mas será assim tão ilógico? Não julguem esta ideia já, antes de o fazerem, vejam-se ao espelho...

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quinta-feira, 25 de março de 2010

Goodbye...

Every time we say goodbye, I die a little
Every time we say goodbye, I wonder why a little
Why the Gods above me, who must be in the know.
Think so little of me, they allow you to go.
When you're near, there's such an air of spring about it
I can hear a lark somewhere; begin to sing about it,
There's no love song finer, but how strange the change from major to minor,
Every time we say goodbye.
When you're near, there's such an air of spring about it
I can hear a lark somewhere; begin to sing about it,
There's no love song finer, but how strange the change from major to minor
Every time we say goodbye.
Thank you Cole Porter and Natalie Cole
Até daqui a uns dias...
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segunda-feira, 22 de março de 2010

Querido Diário...

Acho que já aconteceu, de certeza, a toda a gente tropeçar nuns livros velhos que lá andam aos caídos pelo sótão da casa e reparar que um deles tem um cadeado de um pormenor que o torna quase tão belo como a capa dura que envolve aquelas finas cento e poucas páginas.
E apesar da tarefa que nos compete ali ser a de limpar o sótão, passamos tudo para segundo plano pela leitura de algo privado e até proibido, a tentação do fraco ser humano vem ao de cima nestas alturas.
Arrasto uma almofada, sacudo o pó que a cobre e sento-me, quando estou pronta para aquele pequeno e simples guardador de segredos, almas, vidas, me revelar uma personagem que vivia numa altura mais simples ou mais complicada, com uma vida glamoureuse ou não, repleta de paixões ou não...deparo-me com um pequeno GRANDE problema, não tenho a chave que me iria transportar para outra dimensão!
Desilusão total...claro que o que dava vontade de fazer era deixar o instinto animal dominar a minha racionalidade e despedaçar por completo aquele entrave! Não o fiz por respeito, consegui-me controlar, pensei no carinho que o autor daquele diário depositou naquelas páginas. Apesar de me sentir triste por não poder agora ter o privilégio de ler as confissões de um anónimo não desisti imediatamente.
Sentei-me e pensei em todas as minhas opções:
a) Destruir o pequeno cadeado e tirar a beleza do conjunto confissões/capa dura/cadeado;
b) Experimentar com um alfinete abrir a fechadura;
c) Encontrar uma chave que poderia nem existir.
A primeira estava fora de questão...fui então à caixinha da costura, que por sinal também estava coberta de pó (notável falta de uso), tirei um alfinete, corri para o sótão outra vez e tentei o meu recente chico-espertismo...expectativa...nada. Devo admitir que nunca tive jeito para a trafulhice, infelizmente, neste caso.
Só me restava virar de pantana aquele sótão e se necessário toda a casa! Comecei pelos caixotes, caixas e caixinhas...nada...gavetões, gavetas e gavetinhas...nada...debaixo de todos os almofadões, almofadas e almofadinhas...debaixo de todos os sofás...em cima de todos os armários...nada! Desarrumei a casa toda...nada... De repente, o meu pé, incontrolável pontapeou tudo o que encontrou, dei por mim a saltar nas frágeis tábuas do sótão e uma cedeu! Quando tirei o meu pé vi algo a brilhar naquele novo buraco, era uma chave ... seria a chave...?!
Peguei no diário, fiz deste um momento extremamente solene, ajoelhei-me e assim prostrada no chão rodei lentamente a chave, o meu coração acelerou, estava a um segundo de uma outra vida, quando abri o pequeno diário, folheei-o de uma vez só e, para meu espanto foi na primeira página que encontrei o único sinal de tinta: "Querido Diário..."
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domingo, 21 de março de 2010

A voz da Primavera

"Cheguei hoje, a recepção foi calorosa, como todos os anos, acho óptimo a minha vinda alterar ânimos, é uma promessa de uma vida melhor. Um futuro mais sorridente e promissor.
A minha entrada coloriu o mundo de doces cores, cobriu-o de suaves aromas, de uma leveza agradável, todos por quanto passo levitam.
A natureza organizou até um festim para celebrar a minha chegada, os pássaros entoaram as mais belas melodias que conheciam, as flores abriram as suas pétalas o máximo que podiam, as árvores afirmaram a sua presença com novos vestidos a exibir, a relva tornou-se o mais esmeralda que conseguiu, o céu reuniu os seus elementos da maneira mais harmoniosa, as nuvens brancas a rodear um sol mais sorridente e brilhante, os riachos a correr de maneira mais vigorosa, completamente límpidos para que eu me pudesse ver em toda a minha glória, o vento decidiu acalmar e a sua função foi a de espalhar esta preciosidade de dia, os pais levaram as crianças ao festim para contribuir com as suas gargalhadas inocentes e alegres.
Sinto-me abençoada por este mundo, sem ele eu seria apenas uma designação, com ele posso afirmar-me Estação do Ano, a madrinha dos apaixonados, Primavera... "
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segunda-feira, 15 de março de 2010

Modern Day Alice

Hoje enquanto vagueava pelas ruas, deixando-me manipular pelas brisas, aromas, sons, vi-me a ser arrastada por uma força mais poderosa do que eu, um Tic-Tac incessante que anunciava o princípio ou fim de algo.
Continuei, sempre dominada pelo medo e pelo sentimento de aventura, comecei a sentir o coração bater mais forte, o meu passo inconscientemente a acelerar, gotículas de suor a escorrer pela minha testa. O cansaço não iria vencer esta luta.

O Tic-Tac estava perto, martelava-me a cabeça, gritei e, antes de conseguir terminar o AI que os meus pulmões soltavam, vi-me ser engolida! Não houve tempo para reagir, quando ganhei coragem e abri os olhos encontrei-me num mundo esvoaçante, repleto de mobílias, de livros, de ornamentos! Senti-me, estranhamente, segura mesmo estando sujeita às leis da gravidade, havia naquele buraco interminável uma segurança, um calor,...BLACK OUT...

Acordei, penso que horas depois, num sítio peculiar, muitas portas, qual a certa? Senti-me cheia de dúvidas, esta imprecisão que por vezes me atormenta na vida lá em cima, aqui pelos vistos também me persegue. Bem, e como um mundo é feito de escolhas corri para uma das portas, cheia de expectativas e, mais uma vez, como na vida no mundo real, a porta estava fechada, todas as portas estavam...Como forçar a entrada? Tornar-me gigante e derrubar tudo e todos? Não, a resposta foi encolher e subjugar-me a todos, entrar pela porta mais pequena. Na verdade não me custou deixar o meu orgulho para trás, pois o mundo que estava para além de não mais de 40cm de madeira era único. Valeu a pena o esforço para ver cores que nunca tinha visto, formas que os meus dedos nunca tinham experimentado, seres com os quais nunca tinha convivido, sabores que os meus lábios nunca tinham tocado, aromas que nunca tinha sentido...

Finalmente a paz que tanto ansiava com uma pitada da loucura picante que faz de toda a serenidade uma serenidade apimentada, gostosa. Depois de ter desfrutado de tanta novidade comecei, infelizmente, a pensar no que ali estava a fazer, aquela necessidade de compreender tudo estava agora mais forte que nunca, outra vez Tic-Tac...Tic-Tac...mas desta vez o meu corpo não se movia para junto daquele som, talvez porque antes fosse um som tão apetecido, para o qual todo o meu ser era atraído e agora não passava de um ruído que, devido à progressiva proximidade a que o sentia, se estava a tornar totalmente ensurdecedor. Numa tentativa de o abafar tapo os ouvidos com toda a força! E é então que ... BLACK OUT!


ALICE, ALICE! ALI! ALIAURA! LAURA ACORDA!






Quem sou?


Onde estou?


Foi um sonho? Ou é este o sonho?


O quê???


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sábado, 6 de março de 2010

Distant Dreamer

"Passei a viagem a ler e a ouvir música, ocasionalmente tinha oportunidade de observar a paisagem extraordinária que vigorava tanto no exterior, como no interior do comboio. Não era a única com uma simples mochila às costas e um ar de quem não se importa, havia pelo menos mais dois viajantes errantes. Havia famílias com um brilho nos olhos pela promessa de um dia fabuloso que poderiam passar na capital. Penso que fechei os olhos por um momento ou outro, mas o importante é que chegada à estação já estava bem desperta! Saltei do comboio mal parou e respirei o ar poluído da estação, fiquei durante alguns minutos a registar os reencontros na estação, abraços de filhos que foram procurar uma vida melhor na capital, à espera dos pais que chegavam das aldeias, mas mais surpreendente eram os pais que esperavam os filhos que tinham ido procurar uma vida mais calma no interior. Foi um momento semelhante ao do filme "O amor acontece" em que vemos os reencontros num aeroporto. Decidi visitar um bocadinho Lisboa, que infelizmente não conheço assim tão bem...mais uma vez embrenhei-me num álbum que combinasse com Lisboa.
Muse
01- Uprising
02- The Resistance
03- Undisclosed Desires
04- United States of Eurasia (Collateral Damage)
05- Guiding Light
06- Unatural Selection
07- Mk Ultra
08- I belong to you
09- Exogenesis Symphony Part 1
10- Exogenesis Symphony Part 2
Percorri alegremente a Baixa Pombalina, Belém, Chiado e Bairro Alto. Maravilhei-me com a arquitectura dos magníficos teatros, onde desejo tanto um dia poder entregar-me a um público merecedor. Comi um pastel de Belém, não precisei de nada mais para me encher o estômago porque tinha o espírito cheio! Procurei um cinema onde estivessem a fazer círculos de cinema alternativo e deleitei-me pela noite fora, eu e mais cinco pessoas com grandes nomes como Fellini, David Lynch, Lars Von Trier...O dia em Lisboa terminava, fui novamente para a estação, duvidosa ainda quanto ao destino, entrei num comboio que uma certeza eu tinha levaria-me além fronteira!
Obrigada pelo dia Lisboa!
Da vossa, Distant Dreamer"
Do meu alter ego, Laura Silva, que nasceu no ano de 1992

quinta-feira, 4 de março de 2010

Laura Pan

Todos somos um produto da nossa época, somos constantemente influenciados pelas nossas origens, pela nossa sociedade. É na nossa infância que os primeiros traços a carvão e, muito ao de leve, são feitos na tela da nossa vida.
Todos temos marcos de infância, marcos, muito provavelmente, comuns. Quem nunca sorriu ao ver os finais dos contos de fadas, quem nunca desejou voar num tapete mágico, quem nunca sonhou com a casa de gengibre? Pois um dos marcos da minha infância é o de menino que nunca cresce, Peter Pan. Ainda hoje, enquanto tento adormecer ao som do vento, da chuva ou da suavidade do Verão, penso sempre na janela pela qual, a qualquer momento pode irromper aquele eterno menino, pronto para me levar daqui, a voar, até à Ilha do Nunca - segunda estrela à direita, em frente até de manhã! Um local onde não somos atormentados pelas obrigações, pelos horários, pelos adultos, pelo crescimento, pela morte, enfim onde não nos é esfregado na cara constantemente o quão abençoados fomos por termos vida...é-nos simplesmente permitido desfrutá-la!
Um mundo onde se brinca sempre, onde se ri sempre, onde tudo é simples, um local onde não temos que assistir ao sofrimento, nem passar por ele, um local sem doenças, sem fome, sem desgraça, onde para voar não são necessários bilhetes de avião, hélices de helicópteros, foguetões, nem sequer asas, apenas pós de perlimpimpim, um mundo onde o dia começa sempre com um "Era um vez..."e termina sempre com um "E viveram felizes para sempre..."
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quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Sou um pequeno Calimero...

Sinto-me num turbilhão,sinto-me dentro de um ovo, onde o espaço começa a ser pouco para mim, mas a casca ainda está algo dura, não consigo perfurar. Deambulo nesta ambiguidade que é sentir-me confortável, quente, um espaço verdadeiramente acolhedor, maior parte das vezes. Depois, por vezes, sinto-me sufocada, falta oxigénio e espaço para eu conseguir abrir as minhas asas que são ainda tão pequenas, mas que assim também não conseguem crescer.
Dou por mim a ser uma espectadora assídua da minha própria evolução, crescimento, progresso. Vejo o que faço a mim e aos outros e observo o que os outros me fazem, tento intervir, mas ninguém me ouve, depois resta apenas o arrependimento da acção que não devia ter sido feita...eu tentei avisar. É como naqueles sonhos aflitivos em que gritamos para que nos salvem, mas ninguém nos ouve...
Hoje estou num desses dias, sinto-me não eu, mas espectadora do meu eu, hoje foi um dia em que me fartei de gritar, sinto-me totalmente afónica, e de que serviu, de nada, tudo o que de errado podia fazer e sentir, fi-lo e senti-o.
Estou-me a afogar na minha porcaria!
Preciso de partir a casca, antes que a casca me parta a mim...
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quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Distant Dreamer

"Finalmente, acabou, esta luta continua de doze anos, chegou ao fim, tanto à minha frente...o mundo está à minha espera!
Ponderei muito e muito tempo sobre o que se seguiria, o normal seria universidade, escola de teatro, depois pensei em fazer um gap year, organizadamente parar um ano. E agora que o momento chegou tomei uma decisão pouco ponderada pela primeira vez, vou seguir os meus impulsos sem recear o amanhã. Neste momento preparo uma simples mochila cheia de jeans, t-shirts e casacos, dois pares de allstar, são quatro da manhã, está a chegar a hora e estranhamente não estou assustada.
O dinheiro que ao longo dos anos juntei debaixo do colchão (desculpem o cliché) está espalhado pelos meus pertences, como sempre me ensinaram a fazer e eu como boa viajante, sempre fiz.
Pensando naquela eterna pergunta: se fosses para uma ilha deserta que livro levavas? Se fosses para uma ilha deserta que filme levavas? Se fosses para uma ilha deserta quem levavas? Bla Bla Bla! Levo então uma família querida para mim, Os Maias para me lembrarem do amor, da tragédia e do meu país. Levo também uma espécie de guia de viagem para me transmitir coragem, Chocolate, quem sabe não venha eu a abrir uma chocolaterie? Levo o que me abriu os olhos para o meu futuro, o Moulin Rouge e levo o meu ídolo, para me lembrar sempre do talento, do ícone, da música, de uma língua linda e de uma época mais simples e, apesar da gigantesca contradição, mais conturbada, Les Parapluies de Cherbourg. E, a pessoa mais importante e essencial que levo, eu mesma, a única e genuína Laura.
Pensei em ser absolutamente dramática e despedir-me com uma carta perfumada e coberta de lágrimas, mas pareceu-me mais correcto deixar um simples bilhete smell you later, depois faria um telefonema, não dramatizemos...Está na hora, um arrepio percorre-me a espinha, pego nos meus óculos de sol, na mochila, olho pela última vez, pelo menos nesse ano, os meus pais e sem dar conta estou já fora de casa.
A escolha musical tem que ser sem dúvida animada, repleta de verão, de alegria, de viagem, de aventura e com os fones enterrados na cabeça começo a andar.
Vampire Weekend
01-Mansard Roof
02-Oxford Comma
03-A-punk
04-Cape cod kwassa kwassa
05-M79
06-Campus
07-Bryn
08-One
09-I stand corrected
10-Walcott
11-The kids don't stand a chance
A máquina de filmar já está a funcionar, daqui a uns meses será bom rever aquelas imagens que me farão recordar o meu lar...aproxima-se o primeiro meio de transporte, vejo a estação de comboios, ainda tenho tempo até chegar o comboio, respiro pela última vez este ar puro da serra e olho, pela última vez o céu azul que caracteriza a região do centro. Primeira paragem Lisboa, aqui vou eu! Aguardem notícias minhas!"
Do meu alter ego, Laura Silva, que nasceu no ano de 1992 e acabou o secundário há coisa de um dia, como puderam constatar, iremos ter notícias dela ao longo desta louca viagem (espero eu) <3
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