quarta-feira, 26 de maio de 2010

Entrevista com Insónia

(Insónia entra no quarto, algo vacilante, senta-se no sofá de veludo, observa a divisão atenciosamente, fixa o olhar num relógio de parede, a hora marcada - 4 da manhã. Acende um cigarro, dá um golo no copo de água que está na mesa, recosta-se no sofá, parece pronta.)
Entrevistadora: Antes de mais obrigada por ter comparecido e estar disposta a responder a algumas das minhas perguntas. Porque não começa por nos contar a sua história?
Insónia: Eu sei que a minha visita foi algo imposta, sinto isso de todas as vezes que visito alguém...Eu sou uma daquelas coisas que existe no mundo que ninguém na verdade aprecia, sou como a morte, ninguém nos dá valor. Somos, como costumo dizer, os opostos depreciativos da sociedade, sim hoje em dia toda a gente tem horror a alguns antónimos e utiliza-os depreciativamente. Se eu pedisse a alguém para me dar um oposto diria morte que é antónimo de vida e não vida que é contrário de morte. Bem, mas enfim, tudo isto existe, tu isto é triste, tudo isto é fado... (Risos)
Quanto à minha história, na verdade não há muito para contar, existo desde que existe o dormir, o sono, existo portanto desde que o mundo existe, há sempre alguém para atormentar, é assim que as pessoas me vêem, como um tormento.
Entrevistadora: Tenho a certeza que há excepções, mas qual foi a primeira vez que visitou alguém?
Insónia: A primeira vez que decidi ligar-me a alguém foi nos primórdios da raça humana, jovem, vigorosa, sonhadora, encontrava interesse nas feições e atitudes daquele ser, ainda que muito rudimentar, tão curioso e com uma capacidade de aprendizagem fenomenal. Nesta altura o Homem ainda era nómada, deambulava pelo planeta Terra em busca de meios de sobrevivência. Foi numa calma, quente e estrelada noite, que avistei um grupo destes seres aglomerados numa gruta, preparavam-se para se entregarem ao sono, experimentavam agora a tranquilidade do silêncio e a horizontalidade dos seus corpos pouco cobertos. Escolhi um deles e entrei na sua mente, a reacção não foi a que eu esperava, eu queria partilha, entrega e só obtive alguns grunhidos, um rebolar no chão e comichão em vários sítios do corpo do qual o ser imediatamente tratou. Reagiu como se não desejasse a minha companhia, mas eu não desisti, tentei exasperadamente e inúmeras vezes tentar chamar a sua atenção como uma criança entusiasmada por mostrar as suas capacidades a mergulhar para a piscina faz com o seu pai, a reacção foi também a mesma de um pai, fui ignorada. Após ter passado a noite a tentar fazer-me notar, com o raiar do sol todos os outros acordaram, estava na hora de partir. A pessoa com a qual eu tinha passado a noite estava exausta e não sei se devido à sua fraca capacidade mental, não se conseguia levantar, foi então abandonado...a lei da sobrevivência. Eu entreguei um homem aos braços do sono eterno pelo meu egoísmo e inexperiência, senti-me para sempre culpada. (Chora)
Entrevistadora: É natural, mas a culpa não foi sua. Quando voltou a ter coragem para se ligar a alguém.
Insónia: Levou muito tempo até eu conseguir recuperar e desejar estabelecer contacto outra vez, alguns séculos depois soube que estávamos na época dos grandes pensadores, os chamados filósofos que começaram por duvidar de tudo, queriam saber o que parecia inexplicável a olho nu. Estudavam muito, sabiam muito, dominavam imensas áreas do saber. Eu queria beber daqueles seres tudo o que eles me pudessem dar para matar a minha sede, e assim fiz. Assisti de perto às grandes discussões nocturnas entre Sócrates e Platão causadas pela minha presença, o desvendar dos segredos como a origem do conhecimento! Entrei na mente de Aristóteles, na de Hypatia quando ela já falava do heliocentrismo, foi numa noite comigo que Pitágoras concluiu o seu teorema! Presenciei as grandes batalhas políticas pela democracia, tão precoce...Mais tarde contactei com o primeiro grande revolucionário político, social, cultural - Jesus, uma mente que queria mudar o mundo antes que este se auto destruísse!
Acompanhei de perto os que na idade média escreveram livros, criaram movimentos artísticos como o renascimento, reinventaram teorias que eram punidas...Eu estava na invenção do primeiro filme a preto e branco, do primeiro filme a cores, nas grandes músicas dos séculos! Estive nas noites de ensaios desenfreados que duravam horas quer nos conhecidos palcos da Broadway, quer nos simples palcos da rua e do mundo!
Conheci os actores, encenadores, filósofos, historiadores, físicos, matemáticos, políticos que moldaram o mundo!
Entrevistadora: Fascinante...
Insónia: Parece fascinante, mas há muita podridão pelo mundo fora e o problema é que eu corroborei com essa podridão faço tanto parte do estrelato do palco do mundo como dos bichos da madeira que destroem lentamente esse palco! Eu estava com os milhões e milhões de soldados que chacinavam aldeias inteiras repletas de mulheres e crianças, idosos e restantes graúdos, quando à noite penetravam nas aldeias e violavam o que lhes aparecia à frente eu estava lá! Cada golpe, cada gota de sangue, mancha ainda a minha pele! Queimei grandes mentes com a inquisição! E nas duas grandes guerras do século XX eu estava lá, junto das mentes maquiavélicas que durante a noite engendravam esquemas para magoar quem quer que fosse por ganância! Eu vivi nos campos de concentração diariamente, porque ai não se dorme, mesmo que se queira, ai não era eu que impunha a minha presença, era chamada para confortá-los, aos que lentamente caminhavam para a morte ou para o resto de uma vida repleta de traumas! Se calhar se eu não existisse também nada disto existia, porque toda a gente estava a dormir, não tinham que pensar em fazer mal, por vingança, ou então pensavam na mesma no mal enquanto dormiam...toda a gente pensa que eu sou o oposto mau, mas os sonhos enquanto dormimos também o podem ser!
Entrevistadora: Penso que independentemente de existir ou não essas pessoas iam fazer o mesmo, corria-lhes e corre-lhes no sangue. Continue a falar das suas conquistas por favor?
Insónia: Tenho conquistas das quais ainda não falei e tenho certeza que estas são pessoas muito mais dignas de fazer parte da grande história mundial do que alguns que efectivamente fazem, os pequenos gestos valem muito.
Gosto muito de fazer os apaixonados ligarem-se, um elo indestrutível que se cria numa noite prolongada de amor, que nos tira a razão! Num quarto, numa praia, num jardim, não interessa, desde que seja sob a noite cerrada e claro eu esteja lá, é difícil haver este tipo de entrega enquanto se dorme (risos)!
De vez em quando, entro na mente de um bebezinho, um ser tão frágil e pacífico que quando eu chego irrompe em gritos e lágrimas, mas não faz mal porque vale a pena escutar aquele som agudo para depois ver um pai ensonado pegar com delicadeza no seu pequeno, beijá-lo, acarinhá-lo, falar com ele como se se entendessem um ao outro, abraçar o seu rebento até ele acalmar, ou seja até eu ir embora...
É para mim uma maravilha ligar-me aos jovens, são os que mais facilmente me deixam entrar, porque poucos jovens gostam de dormir quando a noite é quente e cheia de promessas de diversão, calor, música, risos, choro ou quando a noite é fria e repleta de um manto branco, de um bafo divertido libertado de uma boca com lábios roxos, narizinho vermelho mas alma muito quente. Gosto de ver as saídas de amigos que se prolongam comigo pela noite fora, os concertos, as bebidas, os cigarros, os gritos, a rouquidão, a loucura, os beijos quentes dos apaixonados, o deboche saudável de uma adolescência que vai acabar!
Gosto das festas de pijama, em que se contam segredos, comem pipocas, vêem os melhores filmes de sempre e também os piores filmes de sempre (risos). Gosto quando as pessoas reagem à minha presença com um passeio nocturno, com um sorriso pelo que estão a pensar, com o ouvir da música que nos arrepia.
Ultimamente tenho visitado uma jovem adolescente à qual acho piada, porque dela já tive muitas reacções diferentes, cada dia me surpreende, não consigo deixá-la...a primeira vez até me assustou um bocado, a minha presença levou-a a pensar, pensar muito, na escuridão do seu quarto pensou na morte, pensou nos amigos que se vão embora, pensou no facto de ela um dia ir embora, engrandeceu imenso os problemas minímos que a atormentavam. Fiquei assustada, pensei não voltar, mas tive que voltar e a atitude dela mudou, a morte agora via-a como uma oposto, assim como a vida também é; os amigos falava com eles de modo a criar mais momentos e recordações de conversas memoráveis que pudesse guardar para sempre; ela ir embora, enfim mais uma etapa, que poderá ser muito boa; os problemas encolheram subitamente, recebeu-me com música um dia...e hoje, fez-me uma entrevista, quis saber de mim, agora vou-me embora, ela vai dormir finalmente.
Boa Noite Laura.
Porque todas as coisas na vida têm um lado bom, até a insónia...

2 comentários:

  1. "Ultimamente tenho visitado uma jovem adolescente à qual acho piada, porque dela já tive muitas reacções diferentes, cada dia me surpreende"

    ResponderEliminar