quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

A vida num caderno amarelo

Há momentos em que conscientemente me deparo com a vontade e necessidade de rever mentalmente e isoladamente o que é a minha vida, o meu pequeno contributo para o mundo.
O que vejo são acções mundanas e outras não tanto, vejo-me a abrir e a fechar portas, a sentar e levantar-me, a inspirar e expirar, a abrir a boca e fechar, a emitir sons e escutar silêncios, a caminhar variando o ritmo, esquerdo direito esquerdo direito esquerdo direito esquerdo direito esquerdodireitoesquerdodireito...vejo-me a satisfazer as necessidades básicas, a despir e vestir roupa, a passar o meu corpo por água, vejo-me a escrever, a ler, a sorrir, a chorar coisas tão rotineiras como, ou melhor, no meu caso, talvez ainda mais rotineiras do que fazer a cama.
Depois vejo-me a fazer coisas que elevam o ser humano, assistir a uma peça de teatro, um novo mundo, ouvir uma música que nos faz sentir nostálgicos porque transporta o aroma daquele dia de primavera em que tinha oito anos e sapatilhas vermelhas (talvez de rebuçado), ver um filme, e a tentativa incessante de criar...o que quer que seja.
No entanto toda esta panóplia de acções cada vez se me afiguram cada vez mais minúsculas e mais na sombra de um espaço maior que se começa a criar e no qual me sinto completa e genuína. Uma sensação provocada simplesmente por uma outra vida, de uma outra pessoa que como eu abre e fecha portas, se senta e levanta, inspira e expira, abre e fecha a boca, emite sons, caminha variando, desajeitadamente, o ritmo esquerdo direito esquerdo direito esquerdo direito esquerdo direito esquerdodireitoesquerdodireito...que como eu satisfaz as necessidades básicas, despe e veste roupa (ainda mais do que eu), passa o corpo por água, escreve, lê, ri muito, chora...vê teatro, ouve música, canta música e sente-a, de um modo inexplicável para nós restantes mortais...esta pessoa e só esta pessoa recriou, para mim, um espaço muito semelhante ao que todos experienciámos durante os nove meses de gestação, o conforto, a liberdade, o isolamento de tudo o que está de errado com o mundo, o isolamento da dor, da mágoa que os outros, que esperam tudo de nós, nos provocam.
Este espaço não necessita de um local confinado para existir, existe no olhar, no toque quente da pele suave, no respirar ofegante ou não, no suspiro ao ouvido, nos lábios carnudos que beijam.
Todo este palavreado altamente rebuscado não significa que não haja lugar para a infantilidade que nesse espaço também me é permitida, aliás não é a seriedade e maturidade que é dominante, porque simplesmente não é um espaço de hegemonias, mas sim de equilíbrio.
Se quisesse descrever graficamente esta sensação, deste espaço no qual me sinto tão segura, teria que imaginar quatro paredes suspensas no vazio, mas dentro das quais cabe o mundo inteiro, que está de facto nas nossas mãos, e que podemos guardar na gaveta das meias sempre que nos apetece.
Sim, sim agora apetece-me resumir o mundo a bifes de caril e crepes de chocolate, não há mais nada, só bifes de caril e crepes de chocolate...bifes de caril e crepes de chocolate...resumir o mundo a beijos roubados, resumir o mundo a dormir em conchinha durante horas a fio, nem interessa se são horas, porque neste espaço...não existe tempo...existe momento...frame a frame, sem pensar qual é a duração deste...murmura a outra pessoa "Ás vezes quem me dera que o tempo parasse", mas ele pára, ele pára mesmo, aqui pára mesmo.
E não é a distância que destrói este espaço, porque ele não é frágil ao ponto de desmoronar, ruir pelo simples facto de não haver convivência física...o que acontece é o espaço ficar mais amplo. Porque neste espaço a vida tem banda sonora. Porque neste espaço a vida está escrita num caderno amarelo. Porque neste espaço a vida é simplesmente...vida...é a vida, contigo.

domingo, 7 de novembro de 2010

Didascália

Quão ténue será a linha que separa a realidade da imaginação? Será que conseguiremos distinguir em que mundo, em que dimensão estamos embrenhados? A quantos passos estaremos da loucura? Ou, vendo as coisas de outro prisma, a quantos passos estaremos da sanidade mental?
E se passarmos a vida a fazer-mo-nos passar por outros? Olhar-mo-nos todos os dias ao espelho e vermos todos os dias alguém diferente...conviver todos os dias com personalidades diferentes. Como é que lidamos quando numa noite morremos e minutos depois pedem-nos para fazer uma vénia perante uma audiência que aplaude entusiasticamente...o quê?...os pedaços da minha vida, a minha morte, o meu renascer das cinzas, o meu ressuscitar? O meu declínio...
Este é o momento certo para escrever sobre este tormento, porque tenho consciência, sou um espectador exterior do meu próprio percurso e estou a ver-me atravessar uma fronteira...
Jovem, audaz, perspicaz, capaz, competente, revejo-me a tomar a decisão, a optar por uma vida difícil, não habitual, pouco ortodoxa...não o típico rapaz que tira o curso de engenharia ou outra coisa qualquer, foi um exemplo escolhido ao acaso, admitindo que há acasos. Os primeiros papéis...tudo bem, os anos passam. Já me apaixonei vinte uma vezes, doze das quais fui bem sucedido, já matei quatro vezes, uma a mim próprio, fui homem quarenta vezes, mulher três, criança cinco, idoso dez, pai oito, animal uma vez, rei seis, soldado duas, escravo uma, cantor vinte, morri trinta e uma vezes...esta é uma das minhas vidas, não me perguntem qual, não sei responder, o que vejo é dúbio...
Depois vejo um casamento, um divórcio, um filho, uma casa, um apartamento, uma garrafa vazia...
Ambas as imagens são pitorescas, qual escolhiam? Mais importante, qual escolhi? Mais importante o que é que tanto aplaudem? Parem de se levantar, de sorrir tanto!
Já não consigo distinguir nada e dói-me a cabeça e eu já morri entendem? Então porque é que continuo a acordar e a morrer e a acordar? Porquê esta repetição incessante de um cenário já meu conhecido? Eu...será que eu fiz...fiz algo de errado? Morri mal? Pode-se morrer mal? Eu sou actor? Eu sou homem? Eu sou um homem que é actor...um actor que é homem...é, é, será possível ser ambos? Porque é que aplaudem? Sou um actor a fazer de actor? Um homem a fazer de homem? Um homem pode fazer de homem? É ... isto é aflitivo, sinto uma pedra de toneladas sobre o meu peito e custa...respirar...entendem? Porque é que aplaudem?
(Aplausos)
Que didascália é esta? Será a minha vida uma didascália à espera de ser seguida? Não? Era um monólogo? Era só um monólogo, um papel?
Mas porque é que aplaudem?...

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

"Paga com dinheiro ou multibanco?"

Mais uma ida banal, necessária e tão desinteressante às compras. O ritual em que entramos num edifício, mais um edifício onde o ser humano é vigiado constantemente, quer pelas câmaras instaladas em cada centímetro cúbico, quer pelos movimentos bancários que faça. Um edifício de betão que domina as nossas carteiras, onde como formigas nos alinhamos à espera de recolher a nossa alimentação para nós e para a nossa família. O ritual tão semelhante ao que era usado nos tempos de escravidão ou nos campos de concentração durante o holocausto: uma fila à espera da dose diária.
Como muita gente, neste dia solarengo, penetrei neste antro de consumismo, era necessário comprar alimentação para este mês. Sempre as mesmas acções, a monotonia de sempre, pôr a moeda, tirar o carro, ver a alegria e o entusiasmo das crianças nas cadeirinhas do carro das compras, ou a conduzir o seu próprio carro pequenino, como se este fosse o melhor sítio do mundo onde estar. Isto tudo em oposição às caras menos amigáveis dos adultos que entre tentar controlar a euforia dos petizes, fazer contas mentais sobre quanto prevêem gastar, rever mais uma vez a lista memorizada à última hora têm ainda espaço para pensar que este era o último sítio onde gostariam de estar no mundo.
É neste momento que o nosso ideal de sofisticação no que toca à procura de comida é deitado abaixo e substituído pelo mais primitivo, entramos na selva! As estantes transformam-se em árvores imponentes de uma floresta tropical, as luzes incandescentes confundem-se com o sol abrasador dos trópicos, o som do CD que tão exaustivamente passa é substituído pelo chilrear de toda a espécie de pássaros, pelo rugir dos predadores, pelos berros de pânico das presas, pelo choro das crias, pelo barulho dos passos preocupados dos progenitores! A corrida ao último naco de carne! O trepar pelo cacho de bananas! Os atropelamentos...as confusões...as indecisões...o engarrafamento...o congestionamento...os odores...os empurrões.
É, embrenhada nesta selva, encostada ao carro que conduzo (é a minha tarefa, todos temos uma), que me abstenho desta irrealidade lunática tão real à qual assisto como espectadora passiva. É, talvez, nestes momentos de alienação completa que tenho algumas das minhas reflexões diárias. Muitas vezes concentro o meu olhar penetrante em algo, entro num transe controlado que pode ser provocado por uma mancha suja no chão. Mas desta vez enquanto observava o cenário em meu redor deparei-me com um papel amarelado todo amarrotado. Como ser humano a tendência natural foi de começar a questionar tudo o que poderia estar relacionado com aquele papel abandonado. Há quanto tempo estaria ali? A quem teria pertencido? Seria um papel sem nada escrito, um talão de compras, um bilhete romântico perdido pelo tempo, uma ameaça? E se estiver efectivamente escrito? A caligrafia será preocupada, despreocupada? Perceptível, imperceptível? Feminina, masculina? Também pode ser um desenho, um retrato, uma paisagem, uma brincadeira de criança! Um poema, um texto eloquente, amarrotado na angústia da imperfeição. As dúvidas, as questões atormentam-me a mente. Tenho duas opções, ou penso é só um papel...se calhar sem nada, deixado cair por acaso e devido a não ser assim tão importante foi deixado conscientemente para trás. Ou apanho-o e satisfaço a minha curiosidade. A fila na pesagem da fruta era longa, a minha mãe ia demorar, eu tinha tempo.
Discretamente, dou algo como seis passos e, dissimuladamente apanho-o. Agora é, finalmente, meu! Retorno ao carro com um ar vitorioso no meu rosto. Aperto o papel com a mesma intensidade que o meu próprio coração aperta. Está na altura de abrir, desvendar o segredo de uma vez por todas. Mas a racionalidade ataca outra vez...E se quando abrir o papel ficar desiludida?
Abro na mesma e vejo que não é nada mais do que uau que irónico...uma lista de compras. Rio-me um bocado sozinha, paro quando vejo alguém olhar para mim. Agora sinto-me impelida a ler a lista, era pequena, mas tinha sido escrita meticulosamente.
Lista:
Leite
Ovos
Pão
Pizza
Gomas
Alface
Maçãs
Arroz
Água
Coca-Cola
Pasta dos Dentes
Martini
Cerveja
Limão
Morangos
Chantilly
Comecei a ler uma pessoa e não uma simples lista. Esta pessoa estava-me a parecer uma oscilação, ora produtos saudáveis, ora produtos não tão saudáveis. Ora comida e bebida infantil, ora comida e bebidas nitidamente para um serão entre amigos ou especial. Por momentos quis ser aquela pessoa, aquela pessoa que faz uma lista por uma ordem tão disfuncional, porque quereria fazer exactamente este percurso? Teria algo de especial andar de um lado para o outro, a voltar atrás? Despreocupação total, sem pressa...
Eu tinha que fazer isto, irrompi a correr com o carro e juntei tudo o que estava na lista! Foi adorável, uma sensação de liberdade, por causa de uma lista amarrotada. Agora já não via a selva, já não sentia a monotonia, esta já não era uma tarefa rotineira! A minha mãe chega olha para o carro, está cansada, ainda com a cara pouco amigável do adulto que vai às compras...nem sequer questiona.
Chegamos à caixa para pagar, olho para os produtos das pessoas à nossa frente e o que vejo? Sim! Leite, ovos, pão, pizza, gomas,alface, maçãs, arroz, água, coca-cola, cerveja, limão, morangos e chantilly! Então, mas falta a pasta dos dentes e o martini. Pego nos que eu tinha comprado, aproximo-me e digo: "Não perguntem como, mas falta-vos pasta dos dentes e martini, aqui têm."

domingo, 19 de setembro de 2010

Lau...

Perdi parte de mim, desapareceu num ápice,voltei ao meu estado inicial, em que só tenho um olho, uma orelha, uma narina, um seio, uma perna, um pé, um braço, uma mão. Metade de um cérebro, metade de um torso, metade de uma cabeça, metade de uma boca, metade de um órgão sexual, metade de uma alma.
Fui este monstro desmembrado durante dezasseis anos e há bem pouco tempo tornei-me num todo pela primeira vez. Foi a cambalear que aceitei e integrei esta minha nova condição. Ver o mundo com dois olhos, ouvir música com duas orelhas, sentir os aromas do mundo com duas narinas...ter duas mãos que se uniam, lábios para saborear...
Tinha uma dentição completa para exibir e dois corações a palpitar dentro de mim. Gostava de acordar e saber que era um todo, um só, mas inteiro.
Agora tudo o que me foi dado foi-me também tirado, caminho por esse mundo novamente ao pé coxinho, empurro obstáculos com a pujança do meu único braço, as minhas lágrimas vertem apenas por um olho...agora ao invés de querer acordar prefiro adormecer para sonhar com aquele todo tão perfeito que um dia fui.
No entanto ainda sinto dois batimentos cardíacos dentro de mim, e a minha alma ainda é um todo.
O que é a física quando há química?!

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Conversas de Balcão

Cheguei aquele ponto da vida no qual, ironicamente ou não, me encontro mais perto da morte e ao olhar de soslaio pelo meu ombro direito, tenho em restrospectiva a minha vida.
Como quando nos filmes as personagens ao estarem perto de ir, não sei bem para onde, têm flashes da sua vida, memórias de 30, 50, 80 anos, condensadas, compactadas, enlatadas em não mais de 10 momentos cruciais. Porém interrogo-me se tenho sequer 10 momentos...
Alberto, 70 anos, aposentado, ex barman num hotel, viúvo, pai, avô, vivo para o estado, para o banco, para o seguro, para o lar, invisivel para a sociedade, morto para os filhos, netos, morto por dentro...
Uma infância banal, sem luxos, com uma bola nos pés e joelhos esfolados, pontapeei pelo mundo até aos catorze, comecei a trabalhar, casei, tive dois filhos, criei-os, a minha esposa faleceu, os filhos que vinham todas as semanas passaram a vir de mês a mês, de ano a ano, nunca.
Quando olho para trás vejo uma vida preenchida por vivências que não são as minhas, como a história de como uma vez me aperaltei todo para um jantar romântico combinado por jornal, um daqueles anúncios "Procura-se HOMEM", fato novo, sapatos engraxados, flor na lapela, cabelo penteado, carro polido ia ser a conquista do ano. Pus a chave no carro e ... nada ... literalmente, pois não tinha combustivel. Apressei-me para o metro, as portas a fechar eu entro mesmo à risca, nada está perdido, até que vejo que o casaco ficou preso na porta, rasgou, saio em mangas de camisa, um carro passa por uma poça de água enlameada e suja-me. Chego ao restaurante e procuro uma rosa vermelha, era o sinal para que nos reconhecessemos, de repente olho e vejo um homem de rosa vermelha! Corro para o bar mais próximo no hotel na rua em frente, peço um whisky duplo e conto as minhas peripécias ao garçon...um espelho, eu, eu, espera, eu não sou este homem, sou o garçon.
Ou como quando me embebedei com os meus amigos na minha festa de solteiro, um bolo gigante, uma suite no hotel, a gravata à volta da cabeça, fomos dançar para o bar, obrigaram-me a fazer uma lapdance a um amigo (risos), paguei uma rodada a todos, até ao homem do bar...um safari cola...que ele não bebeu porque eu não posso beber em serviço...mais uma vez este meu cérebro, este velho companheiro, a memória enganou-me.
Ou como quando descobri que a minha mulher estava grávida, não! Quando subi de posto na empresa, definitivamente não! Onde pedi a minha mulher e casamento, não! Onde paguei a uma puta para subir comigo ao quarto mais barato e fazer-me um broxe! NÃO, NÃO, NÃO...isto não sou eu, nada disto foi meu...quem sou eu então no meio disto tudo?! O corpo sem rosto, a pessoa sem nome, a voz sem som.
"Garçon, mais uma rodada e rapidinho que há aqui gente com sede!" É já senhor, é para já.
"E eu não entendo porque é que ele precisa de outra, eu não lhe chego?! Serei velha de mais?! Sou velha?!" Minha senhora tenho que fechar... "Vocês são todos iguais! TODOS" Minha senhora a sua conta! Espere, a conta!
"Garçon..." "Olhe desculpe..." "É um martini oh rapaz..." "O costume" "É o costume" "O costume" "Já sabe homem, é o costume"
Que se foda o vosso costume! E o meu costume?! E o meu costume?! Han?! E o meu costume? E o meu...costume? Alberto? E o teu costume? E o teu... (Chora)

domingo, 1 de agosto de 2010

Bom dia Liberdade!

Um dia comecei a escrever, encontrei um refúgio nas palavras, frases, interjeições, figuras de estilo... Encontrei a liberdade, a ilusão, um mundo onde nada me era proibido, onde não havia sonhos, mas sim realidade. Criei um pseudónimo para ser eu neste mundo sem consequências, mas agora dou por mim a pensar que o importante não é o que queremos fazer, mas sim o que fazemos.
Não estou de maneira alguma a menosprezar os sonhos, o que seria de nós sem eles, quero apenas transmitir e anunciar a minha mudança de atitude, basta de me ficar pelos sonhos, há que perseguir afincadamente a concretização.
Sonhei com uma partida, com uma mochila, com um comboio, com uma cidade, com experiências. Aconteceu! Sou uma pessoa transformada, deixei de ser a sonhadora, passei a ser o sonho! Foi a celebração de uma amizade, de uma idade, de uma estação, de uma expectativa, de uma ânsia insaciável!
Podia contar milhares de histórias que, desta vez, não seriam de todo inventadas, mas prefiro guardá-las para uma conversa de café num outro lugar, um diálogo e não este monólogo silencioso que faço incessantemente.
Também sonhei com liberdade, com pessoas interessantes, com um romance arrebatador, com a criação de laços, com experiências teatrais mais intimistas. Tive-o durante 6 dias, mas não durou 6 dias, durou 10, 15, 20, 30...dura, perdura...hei-de tê-lo sempre, porque uma vez vivido jamais poderá ser esquecido.
E agora, do alto deste pedestal no qual ainda me sinto, posso dizer que a minha atitude derrotista extremamente precipitada para a minha tenra idade, mudou por completo. Ainda há tanto por fazer, tantas pessoas para fazer rir, tantos locais onde sentir a chuva na pele, tantas lágrimas para derramar, tantos beijos para dar e receber, tanta música para dançar e cantar, tanta bebida para beber, tantos filmes para ver e fazer, tantas páginas para folhear, tantas lutas para travar, tantas cordas para puxar, tanto chão para pisar descalça, tanta conexão com esta terra que é nossa!
Eu não almejo a fama, não deliro por dinheiro, não suspiro por luxo ou glamour, não me contento com uma vida simples e pacata, nem sei se ela existe. O que eu quero é fazer a diferença, seja com as minhas palavras, com a minha voz, com as minhas cores, com a minha arte, com o meu amor... Seja com uma multidão num auditório ou numa sala de cinema, seja com o pastor que me dá informações de como chegar a uma terra qualquer, seja com a minha família, seja contigo que, ingenuamente, pensas que estás a ler um texto banal, escrito num banal domingo, quando na verdade me estás a ler a MIM, tudo o que represento, tudo o que me importa espalhado aqui. Muito prazer, sou a Laura, a Verónica, a Sophia, o John, o Daniel, sou TU...

segunda-feira, 21 de junho de 2010

A Eterna Noite de 18 de Junho

Numa casa, numa sala, um móvel repleto de livros, histórias do ontem e do amanhã, ficção, realidade, gravuras, colecções que impõem respeito pela sua capa dura e o pormenor do relevo das letras nas suas capas. Livros grandes, livros pequenos. Organizados alfabeticamente em algumas prateleiras, outros lado a lado por pertencerem à mesma colecção, umas prateleiras por temas - filosofia, história, romances, teatro...E há os que são uma família, pertencem todos ao mesmo autor e com orgulho ocupam uma prateleira inteira, uma prateleira de destaque até.
Hoje nesta casa, nesta sala, neste móvel, numa prateleira em específico, havia muita tristeza entre os ocupantes, não havia diferença entre o que os romances, as peças teatrais, os contos, os poemas sentiam. Aquela prateleira hoje parecia mais melancólica do que em todos os outros dias, hoje o pó que diariamente confere algum je ne sais quoi aos livros, hoje só fazia transparecer a tristeza que havia naquelas páginas.
Era dia 18 do quente mês de Junho, o sol que se escondera há poucas horas atrás começou por penetrar janelas e cortinados, alertando que o dia chegara, estava na hora de, na tal sala, os cristais começarem a brilhar mais, os quadros tornarem as suas cores mais vivas, as fotos representarem sem cansaço do tempo que já passou, aquele passado que já parece tão longínquo, a hora das almofadas ficarem mais aconchegantes para os que durante o dia viessem, as plantas erguerem triunfantes as suas flores e folhas, as velas aromáticas reunirem forças para emanar os seus perfumes durante o dia, os móveis que durante a noite acolheram o pó, agora despedem-se dele até à noite e os maravilhosos livros que enchem uma parede chegam até à ponta, até ao limite da prateleira na esperança de serem folheados nem que seja durante cinco minutos, ou até poderem sentir o toque de um dedo suave nas suas lombadas, enquanto alguém procura o que realmente deseja.
Ouve-se o despertador, ela acorda, são sete da manhã. Ele acorda, toma o pequeno almoço enquanto ela passa a ferro e vêem as notícias. A jovem ainda dorme. Eles vêm que hoje o céu vai estar limpo e o sol vai brilhar. Ele toma banho, veste-se e vai trabalhar. Ela continua a lida da casa, ajuda, com um sorriso, os que se tentaram aperaltar com a chegada do sol, limpa os cristais, ajusta as molduras das fotos e dos quadros, acende as velas, ajeita as almofadas, rega as plantas, observa com um olhar de admiração os livros, fala com eles até, retira-lhes os últimos vestígios de pó, faz-lhes cócegas até.
Por volta das onze acorda o ser mais jovem da casa, fala com a mulher, senta-se no sofá, desfruta das almofadas, dos aromas que circundam pela casa, ri-se para os livros também, ajeita mais uma vez os quadros, que lhe parecem tortos, perde-se nas fotos, o brilho dos cristais ferem-lhe os olhos. Foi a primeira a usufruir da preparação meticulosa.
Ao meio-dia e meio ligam a televisão - Notícia de última hora, morreu José Saramago.
Este já não pode ser um dia tão simples, com um céu tão límpido e um sol tão brilhante como a metereologia prometeu. Sobre a pacata casa abate-se um silêncio mórbido. E na prateleira onde tantos livros de um homem tão genial como José Saramago se encontram podem ver-se lágrimas escorrer pelas páginas que hoje de manhã esperavam tudo menos isto, a morte do criador, do pai, de quem lhes deu vida. Mas o pior era não se poderem manifestar...teriam que esperar até à noite, quando a escuridão assola o mundo.
Este foi um dia que não teve 24 horas, mas sim o dobro, o triplo, o quádruplo, o quintuplo...
Como se não bastasse saberem da morte do seu pai desta forma, tiveram que assistir o dia inteiro a bastantes idiotas falar e prestar homenagem a um homem que não conheciam profundamente, não como eles! Que falta de consideração por parte destes humanos que demonstraram mais uma vez o egoísmo que, inevitavelmente, lhes corre nas veias. Os livros precisavam era de paz...
As palavras até amanhã ecoavam pela casa, finalmente...engolidos na escuridão, recuados nos confins da sua prateleira podiam agora falar, mas nada...um silêncio ensurdecedor, irónico não? Alguém tinha que dar o primeiro passo.
CAIM: Bem...eu não queria ser o primeiro a falar, sendo o mais jovem...mas se ninguém se importar.
A CAVERNA: Penso que falo em nome de todos quando peço que continues.
CAIM: Perdemos hoje o nosso pai, quem nos deixou nascer e dizer algo ao mundo. Tanto eu como o ENVAGELHO SEGUNDO JESUS CRISTO causámos muita polémica, talvez desnecessária...mas ambos viemos abanar este mundo tão dominado pela religião. O nosso Saramago era um homem notável por esta capacidade de abominar dogmas...Vai fazer falta ao mundo e a nós, porque quando fui escrito fui mal recebido por uns e bem recebido por outros e vivia assim numa inconstância e depois conheci o meu colega e amigo acima referido e pude descansar finalmente, ele explicou-me tudo...e agora eu, provavelmente, não vou ter a oportunidade de ajudar alguém dos nossos...se é que me entendem (chora), desculpem.
ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA: Vamos ter calma, será que é mesmo assim que Saramago gostava que as suas obras reagissem à sua partida? Nós somos uma extensão dele, o seu legado, não entendem que as suas ideologias permanecerão vivas enquanto nós existirmos?! Ele está aqui, eu sinto-o.
AS INTERMITÊNCIAS DA MORTE: (A rir-se) Posso confessar-vos uma coisa?
(Todos acenam afirmativamente) Depois de eu vir ao mundo, pensei que não havia mesmo morte, por isso, devo dizer que ainda estou um pouco em estado de choque. Mas estou...feliz, muito feliz até.
A JANGADA DE PEDRA: O quê?! Mas tu estás bem?
AS INTERMITÊNCIAS DA MORTE: Sim. Pensem um pouco, vocês conhecem-me, vocês sabem como o mundo seria se não houvesse morte. É um pouco como se não houvesse visão (lança um olhar cúmplice a ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA) caos total! O ser humano era como se se extinguisse, se afundasse na sua loucura!
MEMORIAL DO CONVENTO: Tem lógica...mas porquê ele?! Há biliões de pessoas no mundo e tantos tão maus...
O ANO DA MORTE DE RICARDO REIS: (meio a grunhir)Lá está...
A VIAGEM DO ELEFANTE: Lá está?
O ANO DA MORTE DE RICARDO REIS: O pai morreu porque estava cansado...dessas pessoas. Ele já fez tudo o que podia, agora chegou a hora de descansar...
ENSAIO SOBRE A LUCIDEZ: Vou ter saudades...
O HOMEM DUPLICADO: Fomos escritos com muito sentimento. Paixão pela vida e pelas suas controvésias...tanta dedicação. Lembro-me dos seus maneirismos enquanto escrevia cada palavra.
TODOS OS NOMES: E lembram-se quando...
(risos)
E os livros aproveitaram esta noite quente para homenagear um grande homem, José Saramago, enquanto um mundo dormia, dezenas de outros mundos confluíam nesta prateleira e riam, choravam, amavam, odiavam. E de novo chegou o dia e agora, gostava de dizer isto com certeza e racionalidade, mas como é impossível fico pela incerteza e irracionalidade então assim, neste mundo desprovido de realidade posso afirmar: "No dia seguinte ninguém morreu"...
Um eterno obrigada a José Saramago (16/11/1922 - 18/06/2010) por me ajudar a crescer