quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

A vida num caderno amarelo

Há momentos em que conscientemente me deparo com a vontade e necessidade de rever mentalmente e isoladamente o que é a minha vida, o meu pequeno contributo para o mundo.
O que vejo são acções mundanas e outras não tanto, vejo-me a abrir e a fechar portas, a sentar e levantar-me, a inspirar e expirar, a abrir a boca e fechar, a emitir sons e escutar silêncios, a caminhar variando o ritmo, esquerdo direito esquerdo direito esquerdo direito esquerdo direito esquerdodireitoesquerdodireito...vejo-me a satisfazer as necessidades básicas, a despir e vestir roupa, a passar o meu corpo por água, vejo-me a escrever, a ler, a sorrir, a chorar coisas tão rotineiras como, ou melhor, no meu caso, talvez ainda mais rotineiras do que fazer a cama.
Depois vejo-me a fazer coisas que elevam o ser humano, assistir a uma peça de teatro, um novo mundo, ouvir uma música que nos faz sentir nostálgicos porque transporta o aroma daquele dia de primavera em que tinha oito anos e sapatilhas vermelhas (talvez de rebuçado), ver um filme, e a tentativa incessante de criar...o que quer que seja.
No entanto toda esta panóplia de acções cada vez se me afiguram cada vez mais minúsculas e mais na sombra de um espaço maior que se começa a criar e no qual me sinto completa e genuína. Uma sensação provocada simplesmente por uma outra vida, de uma outra pessoa que como eu abre e fecha portas, se senta e levanta, inspira e expira, abre e fecha a boca, emite sons, caminha variando, desajeitadamente, o ritmo esquerdo direito esquerdo direito esquerdo direito esquerdo direito esquerdodireitoesquerdodireito...que como eu satisfaz as necessidades básicas, despe e veste roupa (ainda mais do que eu), passa o corpo por água, escreve, lê, ri muito, chora...vê teatro, ouve música, canta música e sente-a, de um modo inexplicável para nós restantes mortais...esta pessoa e só esta pessoa recriou, para mim, um espaço muito semelhante ao que todos experienciámos durante os nove meses de gestação, o conforto, a liberdade, o isolamento de tudo o que está de errado com o mundo, o isolamento da dor, da mágoa que os outros, que esperam tudo de nós, nos provocam.
Este espaço não necessita de um local confinado para existir, existe no olhar, no toque quente da pele suave, no respirar ofegante ou não, no suspiro ao ouvido, nos lábios carnudos que beijam.
Todo este palavreado altamente rebuscado não significa que não haja lugar para a infantilidade que nesse espaço também me é permitida, aliás não é a seriedade e maturidade que é dominante, porque simplesmente não é um espaço de hegemonias, mas sim de equilíbrio.
Se quisesse descrever graficamente esta sensação, deste espaço no qual me sinto tão segura, teria que imaginar quatro paredes suspensas no vazio, mas dentro das quais cabe o mundo inteiro, que está de facto nas nossas mãos, e que podemos guardar na gaveta das meias sempre que nos apetece.
Sim, sim agora apetece-me resumir o mundo a bifes de caril e crepes de chocolate, não há mais nada, só bifes de caril e crepes de chocolate...bifes de caril e crepes de chocolate...resumir o mundo a beijos roubados, resumir o mundo a dormir em conchinha durante horas a fio, nem interessa se são horas, porque neste espaço...não existe tempo...existe momento...frame a frame, sem pensar qual é a duração deste...murmura a outra pessoa "Ás vezes quem me dera que o tempo parasse", mas ele pára, ele pára mesmo, aqui pára mesmo.
E não é a distância que destrói este espaço, porque ele não é frágil ao ponto de desmoronar, ruir pelo simples facto de não haver convivência física...o que acontece é o espaço ficar mais amplo. Porque neste espaço a vida tem banda sonora. Porque neste espaço a vida está escrita num caderno amarelo. Porque neste espaço a vida é simplesmente...vida...é a vida, contigo.